Julia Visotskaya |
Andrei Konchalovsky evoca um massacre ocorrido na União Soviética, em 1962: Caros Camaradas! prolonga, com brilhantismo, as exigências realistas do seu cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 maio).
O massacre de Novocherkassk, em 1962, constitui um capítulo trágico na história do comunismo soviético. Num contexto de subida de preços dos produtos alimentares, uma greve numa fábrica de comboios seria reprimida de modo brutal: disparando sobre uma multidão de operários, elementos do exército e do KGB fizeram dezenas de mortos, logo a seguir “decretando” a proibição de divulgação de informações sobre o ocorrido. O filme de Andrei Konchalovsky, Caros Camaradas!, evoca esses factos só devidamente investigados depois do fim da URSS, em 1992.
É o tipo de filme a que temos tendência de colocar o rótulo de “político”. Em todo o caso, muitas vezes, tal classificação arrasta a noção piedosa e pueril de que a pertinência da narrativa se constrói obrigatoriamente a partir do ponto de vista das vítimas. Ora, a encenação de Konchalovsky é tanto mais subtil e perturbante quanto apresenta no seu centro a personagem de Lyudmila (Julia Visotskaya, admirável), militante da célula local do Partido Comunista, encerrada na nostalgia de um “paraíso perdido”. A saber: a época de Estaline.
Konchalovsky consegue, assim, expor um sistema de poder cujo funcionamento está longe de depender apenas dos seus métodos repressivos. Através de Lyudmilla, para mais assombrada pela possibilidade de a sua filha ter sido morta no meio do tiroteio, deparamos com a conjugação de dois factores: por um lado, a sua idealização de um mundo capaz de transcender todas as imperfeições humanas; por outro lado, a pressão de uma hierarquia implacável, emanada do “centro” (os funcionários que chegam de Moscovo para resolver a crise).
Caros Camaradas! prolonga a reflexão de Konchalovsky sobre os mecanismos de poder, rimando com vários títulos da sua filmografia, incluindo O Círculo do Poder (1991), centrado no projeccionista privado de Estaline. Sem esquecermos que ele é um mestre dos mais básicos valores realistas: mais recentemente, em Paraíso (2016), Konchalovsky revisitou memórias da Segunda Guerra Mundial com a mesma subtileza e contundência.