terça-feira, maio 18, 2021

Drácula, Frankenstein
e a essência da percepção

O trabalho de Noronha da Costa tenta ver
"o que se esconde no fundo" da pintura

Várias obras de Noronha da Costa estão disponíveis numa “exposição virtual”: um belo reencontro com o trabalho de um pintor que amava o cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 abril).

Percorrendo o Instagram, descubro que há uma exposição de obras de Luís Noronha da Costa (1942-2020) na galeria Artview, em Lisboa. Ironia dos tempos: trata-se, de facto, de uma iniciativa daquela galeria, mas o lugar em que acontece é outro. Em boa verdade, de acordo com a geografia cultural de que somos herdeiros, já não é um lugar, mas um dispositivo. Ou seja: “Imagens projectadas” (assim se intitula a iniciativa) é uma “exposição virtual” concebida com o objectivo de “proporcionar encontros visuais e conceptuais com o público mais vasto”.
A novidade é relativa, claro. Muita instituições e artistas contemporâneos têm utilizado os recursos da internet para elaborar exposições que “repetem” outras realizadas em espaços tradicionais ou, por vezes, existem apenas como evento virtual — o fotógrafo holandês Erwin Olaf pode ser um bom exemplo.
Jean-Luc Godard
O visitante tem uma “porta” de entrada através da qual acede ao espaço da exposição. Pode, neste caso, escolher uma de duas opções: ir descobrindo à sua vontade as obras expostas, ou aceitar uma “visita guiada”. Tudo muito simples e austero, com informações complementares sobre as características das obras. Atrevo-me a pensar que Noronha da Costa gostaria de saber que os seus trabalhos podem, agora, ser conhecidos através de uma exposição deste teor. Isto porque a sua “concretização” envolve um estimulante paradoxo.
Assim, por um lado, a sua pintura nunca desistiu de uma dimensão factual (ia a escrever monumental…) que faz com que cada quadro exista como um acontecimento capaz de desafiar o nosso olhar e as regras do espaço em que se dá a ver. Alguns espectadores recordar-se-ão, por exemplo, da belíssima pintura colocada no pequeno átrio do cinema Londres, em Lisboa… São memórias, também virtuais, de um genuíno amor pelas imagens, triste e impotente face ao “progresso” urbano que menospreza a cinefilia.
Ao mesmo tempo, por outro lado, o universo figurativo de Noronha da Costa envolve uma discussão, de uma só vez filosófica e sensual, sobre essa tarefa ancestral que consiste em representar o mundo através de um ecrã — do seu misto de evidência e transcendência. Creio mesmo que ele aceitaria estabelecer alguma relação entre o quadro como enquadramento (passe a redundância) e o rectângulo onde descobrimos um filme.
Terence Fisher
Será preciso recordar que ele foi um pintor/cineasta? E não apenas porque realizou filmes — recordo o exemplo emblemático de O Construtor de Anjos (1978). Também porque Noronha da Costa era um espectador & pensador do cinema, apaixonado pela obra de Jean-Luc Godard, especialmente fascinado pelo mestre do cinema de terror inglês, Terence Fisher. Recordo os momentos de convivência com ele, na Cinemateca, e o seu entusiasmo pelo trabalho de Fisher. Num resumo naturalmente discutível, diria que, para Noronha da Costa, os filmes de Fisher — a começar pelas suas variações sobre a mitologia de Drácula e Frankenstein — alimentavam-se da suprema contradição estética: a evidência física gerada pelos meios de registo e reprodução do cinema atrai a paixão pela dimensão invisível do factor humano.
Na entrada (virtual, claro) da exposição da Artview surge uma frase de Noronha da Costa que nos pode ajudar a pressentir a energia, não apenas artística, mas visceralmente política, da sua visão. Diz ele: “É como se eu entrasse dentro da matéria da pintura para ver o que se esconde no fundo. A partir daí, a partir do momento em que essa busca pela essência da percepção se torna o tema fundamental da minha obra, o que é representado é pouco importante.”
Escusado será sublinhar que este misto de obstinação e pudor está longe de ser popular nos nossos dias de muitos assombramentos. A cultura dominante das imagens e para as imagens vive — e faz-nos viver — a partir na noção pueril segundo a qual ver é apenas confirmar o mundo (se corresponder aos valores de quem vê) ou negar a sua complexidade (se tais valores não forem satisfeitos). Noronha da Costa convoca-nos para a aceitação dos limites do nosso olhar — a sua humildade é, continua a ser, revolucionária.