A Canção de Lisboa (1933), com Beatriz Costa |
Foi homem de teatro e pioneiro da televisão, mas é na memória da comédia cinematográfica “à portuguesa” que a sua imagem persiste como fundamental referência artística e afectiva: 50 anos depois do seu falecimento, lembramos o actor António Silva — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 fevereiro). |
No caso de António Silva, a fascinante capacidade de explorar as nuances sociais das suas personagens talvez não seja estranha a uma história pessoal marcada pela consciência muito directa das diferenças e hierarquias sociais. De origem humilde, a sua biografia regista o facto de ter sido como empregado de comércio que foi conseguindo sustentar os estudos (Curso Geral de Comércio, segundo a designação da época), muito cedo envolvendo-se com o meio teatral — a sua estreia como profissional ocorreu em 1910, no Teatro da Rua dos Condes.
O teatro de revista, em particular, terá dado a António Silva, tal como a outros actores da sua geração, uma agilidade física e um gosto lúdico das palavras indissociáveis de um estado de permanente improvisação. Será exagero supor que os seus momentos mais emblemáticos são totalmente improvisados, mas basta lembrar algumas situações em que contracena com Vasco Santana — em A Canção de Lisboa (1933) e O Pátio das Cantigas (1942) — para sentirmos esse gosto por uma certa “instabilidade” da representação em que o diálogo mais elaborado parece impor-se de modo absolutamente instintivo.
Exemplo típico, há muito integrado na linguagem popular, é a expressão “Ó Evaristo, tens cá disto?”, de O Pátio das Cantigas: Vasco Santana, no papel de Narciso, guitarrista versátil mas sempre bêbedo, utiliza-a para provocar o muito sério António Silva, o Sr. Evaristo que gere a sua drogaria como um mundo à parte. Sem esquecer, claro, que por estes filmes passam mais alguns outros intérpretes fundamentais deste período, como Beatriz Costa, Ribeirinho ou Manuel Santos Carvalho.
O inevitável destaque de António Silva no universo da comédia não exclui, antes reforça, as suas primordiais qualidades dramáticas e melodramáticas. Podemos observá-las através de personagens interpretadas em filmes como As Pupilas do Senhor Reitor (1935), de Leitão de Barros, João Ratão (1940), de Jorge Brum do Canto, Amor de Perdição (1943), de António Lopes Ribeiro, Camões (1946), de Leitão de Barros, ou O Dinheiro dos Pobres (1956), de Artur Semedo.
São momentos de um contexto de produção que, ao longo desses anos, se foi decompondo. Como escreve Bénard da Costa: “(…) em 1956, governantes e governados já não pensavam em cinema. Pensavam na televisão, com Ano 1 em 1957.” Artisticamente, António Silva viveu esses tempos numa sugestiva duplicidade: foi o período em que, com o empresário Vasco Morgado, renovou o sucesso no teatro de revista (Viva o Luxo, Abaixo as Saias, Lisboa à Noite, etc.), ao mesmo tempo que surgia como pioneiro do fenómeno televisivo em muitas emissões de teatro, não poucas vezes, num registo típico dessa conjuntura técnica, emitidas em directo. Agora que temos as galas em directo da “Reality TV”, António Silva quase parece um extraterrestre do mundo mediático. Estranhamente ou não, sentimos por ele a mesma admiração e o mesmo carinho.