sábado, março 27, 2021

António Silva, o português suave [2/3]


Foi homem de teatro e pioneiro da televisão, mas é na memória da comédia cinematográfica “à portuguesa” que a sua imagem persiste como fundamental referência artística e afectiva: 50 anos depois do seu falecimento, lembramos o actor António Silva — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 fevereiro).
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Filmes como O Leão da Estrela não foram necessariamente os vertiginosos sucessos com que alguma demagogia cultural tenta, por vezes, caracterizar a “idade de ouro” da produção portuguesa, alimentado a ideia, esteticamente simplista e economicamente cega, de que basta “repetir” as suas fórmulas para devolver ao cinema português o seu alienado paraíso financeiro.
Essa ilusão foi pedagogicamente desmontada por João Bénard da Costa num livro cujo título sarcástico, O Cinema Português Nunca Existiu (ed. CTT, 1996), resume a necessidade de encararmos tal passado com algum pragmatismo. Lembrando o período dessa suposta “idade de ouro” (1931-1954), refere a crença obstinada segundo a qual os filmes portugueses seriam, por essa altura, “a árvore das patacas”; e lança a sua evocação através de um esclarecedor aviso prévio: “Nada mais falso.”
O que, entenda-se, não invalida o reconhecimento desses mesmos filmes como elementos de uma sedutora nostalgia cinéfila, também ela suave e calorosa, reveladora de duas meritórias virtudes comunicacionais. Desde logo, a existência de um colectivo de actores com competências decorrentes de uma importante formação teatral, muitos deles de popularidade granjeada nos palcos do teatro de revista; em O Leão da Estrela, por exemplo, para lá da também admirável Laura Alves, encontramos ainda Milú, Maria Eugénia, Maria Olguim, Óscar Acúrcio, Fernando Curado Ribeiro e Erico Braga (intérprete do rival, adepto do Porto). Depois, a capacidade de integrar elementos da actualidade social, discretamente realistas, muitas vezes trabalhados em forma de caricatura.
A esse propósito, vale a pena recordar que o entusiasmo de Anastácio pelo seu clube decorre de um contexto desportivo em que o Sporting, com os lendários Cinco Violinos — Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travassos e Albano —, se impôs como equipa de espectacular eficácia atacante. Em 1947, ano da estreia de O Leão da Estrela, o Sporting ganhou o campeonato nacional (feito que repetiu nas duas épocas seguintes), marcando 123 golos em 26 jogos (era uma prova para 14 equipas), 43 dos quais com assinatura de Peyroteo.
1947 foi também o ano de lançamento de Capas Negras e Fado, História de uma Cantadeira, dois filmes fundamentais na consolidação de Amália Rodrigues como figura mítica do fado. Dir-se-ia que, pelo menos no domínio da ficção cinematográfica, Amália e António Silva (que também participa no segundo destes títulos) existem como rostos complementares, capazes de definir a identidade paradoxal, também mitológica, do ser (ou não ser) português em meados do século XX.
A cantadeira do fado protagoniza uma eterna demanda de felicidade, sempre assombrada pela crueldade de um “destino” castigador; por sua vez, Anastácio triunfa como variação bem disposta de um modo de ser personagem para quem a vida social existe como permanente jogo “teatral” em que cada um experimenta os poderes, e também os inevitáveis limites, da sua condição de classe. Será curioso e, por certo, sintomático referir que a intriga de O Leão da Estrela, a par de outros títulos da época (por exemplo, O Pai Tirano, dirigido por António Lopes Ribeiro em 1941), coloca em cena personagens que, por diversas razões, vivem situações em que simulam uma “nobreza” a que, de facto, não pertencem.