segunda-feira, março 08, 2021

Scorsese, Fincher, Netflix & etc.

Pierluigi Longo
[Harper's Magazine]

Num artigo de opinião sobre o seu mestre Federico Fellini, Martin Scorsese propõe uma reflexão pedagógica sobre a vida dos filmes na era do streaming: o cinema não é (não pode ser) uma mera questão de “conteúdos” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 fevereiro).

Na edição de março da Harper’s Magazine, surge um artigo de Martin Scorsese que tem tido significativo impacto nos meios cinematográficos, a começar, naturalmente, pelos EUA. O título, “Il Maestro”, refere-se a Fellini, um dos autores mais amados na trajectória de Scorsese, decisivo na definição da sua vocação. O subtítulo é desencantado: “Federico Fellini e a magia perdida do cinema”.
Para lá da celebração da herança de Fellini, o autor de Taxi Driver, A Última Tentação de Cristo e O Lobo de Wall Street vem dar conta, com gélida lucidez, do estado das coisas: passámos da era da cinefilia ao mercado dos “conteúdos”. A cultura comunitária ligada ao conhecimento dos filmes nas salas escuras deu origem ao consumo anónimo das plataformas de streaming em que os filmes… já não são filmes, apenas “produtos” expostos em prateleiras mais ou menos vistosas, à maneira de um supermercado.
Evitemos atrair o simplismo dos discursos panfletários. Scorsese não vem apontar o streaming como o “mal” que importa expurgar, lembrando, aliás, que as plataformas criaram uma conjuntura que também é “boa para os cineastas, eu incluído”. E tem razões para isso: depois de mais de uma década de recusas dos estúdios clássicos de Hollywood, só conseguiu concretizar esse filme prodigioso que é O Irlandês graças ao valor descomunal (160 milhões de dólares) que a Netflix investiu no projecto.
O que está em jogo é algo que, em boa verdade, envolve temas e problemas que alguma crítica de cinema (nos EUA e não só) tem vindo a escalpelizar há pelo menos duas décadas, desde que os super-heróis passaram a ser o “conteúdo” privilegiado pelas estruturas tradicionais de Hollywood, com efeitos muito directos na dinâmica da maior parte dos mercados nacionais. A saber: o crescente desinteresse, para não dizer brutal menosprezo, com que algumas grandes entidades, directa ou indirectamente ligadas à distribuição/exibição, passaram a lidar com a memória dos filmes e, genericamente, o património cinematográfico.
A linguagem de Scorsese pouco ou nada tem que ver com a secura muito cordial da maior parte dos pontos de vista expressos deste lado do Atlântico. A banalização social e comercial da palavra “conteúdo” leva-o mesmo a denunciar o triunfo de uma forma específica de ignorância, em tudo e por tudo, com ele sublinha, alheia às apaixonadas discussões clássicas sobre a dialéctica “forma/conteúdo”. Assim, diz ele, essa palavra “passou a ser cada vez mais aplicada por pessoas que tomaram conta das companhias de media, muitas das quais nada sabiam sobre a história desta forma de arte, nem sequer se preocupavam o suficiente para pensar que talvez devessem saber.” E sublinha o facto de a palavra “conteúdo” se ter tornado um “termo dos negócios para todas as imagens em movimento: um filme de David Lean, um video de um gato, um anúncio do Super Bowl, uma sequela de um super-herói, um episódio de uma série.”
Scorsese não vem instaurar uma “caça às bruxas”, antes lembrar que de Aurora (Murnau) a 2001 (Kubrick), o cinema é “um dos grandes tesouros da nossa cultura” e, por isso, “como tal deve ser tratado”. Paradoxalmente ou não, vamos lendo, com inusitada frequência, notícias sobre acordos de produção que os mais diversos cineastas estão a estabelecer com plataformas de streaming (Netflix, Amazon, HBO, etc.). E não é caso para menos: muitos deles conseguem encontrar aí a liberdade criativa — e a disponibilidade financeira, como é óbvio — para concretizar projectos que, na maior parte dos casos, deixaram de encontrar lugar nos planos de produção de um universo que, da produção à difusão, se tem vindo a encerrar na expectativa do próximo “blockbuster” com super-heróis…
Recorde-se, a propósito, o caso modelar de Mank, o filme de David Fincher sobre Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman), revisitando as memórias da escrita do argumento desse clássico dos clássicos que é Citizen Kane/O Mundo a seus Pés (1941), de Orson Welles. Raras vezes a relação criativa com a memória do próprio cinema foi tão depurada e cristalina. Que tudo isso aconteça com chancela da Netflix não é um erro do “sistema”, tão só um dado objectivo que não pode ser ignorado.