Scorsese e Lebowitz na New York Public Library |
Eis um encontro feliz de um cineasta e uma escritora: Faz de Conta que Nova Iorque É uma Cidade (Netflix) é uma mini-série de Martin Scorsese sobre Fran Lebowitz em que os valores culturais dominantes são discutidos de modo acutilante e bem humorado — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 janeiro).
De que falamos quando falamos de Nova Iorque? Para muitos cinéfilos (e não só…) a resposta poderá ser: falamos dos filmes de Martin Scorsese. De Mean Streets (1973) a O Lobo de Wall Street (2013), passando por Taxi Driver (1976) ou Gangs de Nova Iorque (2002), a sua obra é um espantoso painel, de uma só vez histórico e mitológico, sobre a “Big Apple”. Não admira que Scorsese se interessasse por escutar a escritora Fran Lebowitz (n. 1950), ela que se tornou um verdadeiro emblema da cidade, sempre com pontos de vista polémicos, bem humorados e saudavelmente provocatórios. O resultado do encontro Lebowitz/Scorsese é um dos acontecimentos mediáticos do momento: uma mini-série da Netflix (sete episódios de meia hora) com o título deliciosamente ambíguo de Faz de Conta que Nova Iorque É uma Cidade.
A sua relação de amizade tinha já dado origem ao documentário Public Speaking (2010), organizado a partir do mesmo princípio de diálogo e escuta. Depois, Scorsese convidou Lebowitz a participar em O Lobo de Wall Street, entregando-lhe o pequeno papel de uma juíza que, a certa altura, avalia os crimes praticados pelo corretor da bolsa Jordan Belfort (Leonardo DiCaprio).
Digamos, para simplificar, que Lebowitz é mestre da arte da contradição: “Os maus hábitos podem matar, eu vi isso. Mas não são os bons hábitos que nos vão salvar.” Expor um ponto de vista, seja sobre o que for — da maneira como os novaiorquinos caminham na rua até à decisão de colocar bancas de livros em Times Square, passando pelos efeitos do movimento #MeToo —, envolve sempre algum desafio. A quê? Ao que se instalou nas nossas vidas como saber adquirido ou certeza impossível de questionar.
Daí o seu fascínio pelas crianças, alheio a qualquer infantilismo: “As crianças pequenas constituem o grupo de pessoas menos irritantes porque são as mais improváveis de dizer qualquer coisa que já ouvimos um milhão de vezes. Não estão cheias de clichés. São mais originais que os adultos.” Tudo isto é-nos apresentado, não através do cliché televisivo (um microfone que regista um depoimento sobre um qualquer “tema”), antes como um exercício de celebração da fala e da frágil energia das palavras: “Não tenho poder”, diz Lebowitz, “mas opiniões não me faltam.”
Scorsese filmou uma longa conversa com Lebowitz numa sala (café/restaurante) do clube teatral The Players onde existe uma muito antiga mesa de bilhar — entre as preciosidades da decoração está o taco de bilhar que aí foi usado por Mark Twain. Tais momentos surgem entrecortados por diversos registos em video ou entrevistas televisivas, envolvendo, por exemplo, a escritora Toni Morrison e personalidades do cinema como Spike Lee, Alec Baldwin ou Olivia Wilde.
Um cenário incrível que vai pontuando os episódios é o “panorama” de Nova Iorque patente no Queens Museum of Art: uma réplica a três dimensões que ocupa uma superfície de quase 900 m2. Isto sem esquecer os sofisticados efeitos de montagem que levam Scorsese a “ilustrar” as ideias de Lebowitz com imagens de especial impacto: assim, quando ela fala do valor da arte ou do gosto pelas festas surgem, respectivamente, Marvin Gaye a ensaiar com a sua banda e um extracto da cena do baile de O Leopardo (1963), de Luchino Visconti, com Claudia Cardinale e Alain Delon [untappednewyork].
O “excesso” de opiniões que Lebowitz reconhece na sua postura decorre de uma lógica de vida — logo, de um método de pensamento — que não tem receio de expor a sua resistência aos valores “sociais” dominantes. Ela é, afinal, alguém que insiste em lembrar que não possui nem computador nem telemóvel; em boa verdade, mesmo no começo da sua actividade de jornalista (escreveu, por exemplo, para a revista Interview, de Andy Warhol), nem sequer usava uma máquina de escrever. Lebowitz pertence a um continente cultural que se define, antes de tudo o mais, a partir de uma relação apaixonada com os livros. O que, bem entendido, Scorsese acolhe com carinho e entusiasmo.