terça-feira, fevereiro 16, 2021

Camille Lepage, fotógrafa
— o desejo de conhecer

Nina Meurisse no papel de Camille Lepage:
invocando uma invulgar experiência de fotojornalismo

O filme Camille evoca a experiência trágica de Camille Lepage, fotojornalista francesa que nos legou uma admirável colecção de imagens sobre a guerra civil na República Centro-Africana — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 fevereiro), com o título 'Como se constrói um olhar fotográfico'.

Algo “perdido” na abundância da oferta das plataformas de streaming, eis um pequeno grande filme que vale a pena descobrir: Camille (2019) é uma realização de Boris Lojkine sobre Camille Lepage, repórter fotográfica assassinada na República Centro-Africana, a 12 de maio de 2014, contava 26 anos.
Estamos perante uma lógica dramática mais ou menos tradicional. Por um lado, Lojkine procurou um máximo de realismo, tendo mesmo rodado o seu filme na zona de Bangui, capital daquela país africano que Lepage fotografou durante uma guerra civil pontuada por muitos episódios de inusitada violência; por outro lado, o efeito realista intensifica-se através da integração de actores locais que viveram os acontecimentos narrados e até de um fotojornalista, Michaël Zumstein, que interpreta o seu próprio papel.
Em qualquer caso, não se poderá definir Camille como um mero exercício de “reconstituição”. Aliás, a palavra envolve um irremediável equívoco porque em cinema nunca se reconstrói o que quer que seja: mesmo procurando algum tipo de fidelidade a lugares, pessoas e acções, o que se fabrica é sempre uma nova narrativa.
O filme de Lojkine surpreende pela capacidade de expor aquilo que é, para todos os efeitos, a construção de um olhar. Dito de outro modo: observamos as subtis transformações da visão humanista de Lepage através da progressiva revelação de uma realidade em que se cruzam o fascínio da descoberta das singularidades de um povo e o confronto com os horrores da guerra.
Importa, por isso, sublinhar a sóbria utilização das fotografias (admiráveis!) da própria Lepage no interior do filme. Evitando o efeito fácil de fingir que as suas cenas são uma “reprodução” dessas fotografias, Lojkine vai utilizando as imagens de 2013-14 como uma subtil pontuação narrativa: compreendemos que Lepage se envolveu, de facto, com a complexidade humana de uma atribulada conjuntura política, ao mesmo tempo que sentimos que qualquer imagem, involuntariamente, corre o risco de gerar uma abstracção simbólica que nos afasta da crueza dos factos vividos [Filmin].
O filme acaba mesmo por contrariar um cliché “épico” que, infelizmente, está presente no nosso quotidiano mediático. Nele, e através dele, acaba por se tratar o jornalista (fotógrafo ou não) que se confronta com uma situação de guerra como o “herói” do seu próprio trabalho. Nada disso está presente neste caso, até porque a composição de Nina Meurisse na personagem central é um caso invulgar de sensibilidade: ela consegue essa proeza, sempre dramaticamente difícil, de nos fazer sentir as especificidades da fotografia sem a reduzir a um estereótipo profissional, ainda menos moral — deparamos com um ser vivo, movido, afinal, por um obstinado desejo de conhecer. Camille vem inscrever-se, assim, no património multifacetado das relações cinema/jornalismo. Exemplo (e sugestão) que vale a pena evocar: The Killing Fields/Terra Sangrenta (1984), de Roland Joffé, sobre a ditadura dos Khmers Vermelhos no Cambodja.