Maria Isabel Carvalhais fotografada por Manoel de Oliveira (c. 1939): como se as imagens pertencessem a filmes ausentes |
Graças ao trabalho da Casa do Cinema Manoel de Oliveira podemos, agora, descobrir mais uma dimensão fascinante do seu trabalho: para o autor de Acto da Primavera, a fotografia foi também um instrumento de pesquisa e experimentação — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 dezembro).
Contradições da nossa vida cultural: o prodigioso filme Vitalina Varela, de Pedro Costa, esteve longe de ser um sucesso comercial (foi visto por pouco mais de cinco mil espectadores); agora, conhecida a notícia da sua candidatura aos Oscars, para uma eventual nomeação na categoria de Melhor Filme Internacional, os circuitos “sociais” agitam-se em celebrações de despudorado nacionalismo…
Algo semelhante se poderá dizer da percepção dominante da obra de Manoel de Oliveira (1908-2015). Durante décadas, vozes irresponsáveis e demagógicas denegriram o seu trabalho (com filmes “melhores” ou “piores”, não é isso que está em causa). O certo é que, depois do seu falecimento, passou a ser chique chamar-lhe “mestre”…
Na verdade, não está em causa, como nunca esteve, o juízo de valor que cada cabeça pensante possa formular sobre qualquer objecto cinematográfico (português ou não). Acontece que atribulações pueris deste teor têm como efeito principal a promoção do desconhecimento da arte que temos e, mais do que isso, do modo como nela se projecta o que somos, imaginamos ou desejaríamos ser.
Neste tão difícil ano de 2020, podemos eleger como acontecimento fulcral da nossa vida cultural o imaculado labor da Casa do Cinema Manoel de Oliveira - Fundação de Serralves, dirigida por António Preto. A exposição “Manoel de Oliveira, Fotógrafo” (patente em Serralves até 18 de abril de 2021) deu origem a um maravilhoso catálogo, com o mesmo título, peça a partir de agora fundamental para o estudo e compreensão da obra do autor de Acto da Primavera (1963), Benilde ou a Virgem Mãe (1975) e O Quinto Império - Ontem como Hoje (2004).
Trata-se, em grande parte, da descoberta de mais uma componente criativa de Oliveira. As suas fotografias, “produzidas entre o final dos anos 1930 e meados dos anos 1950” são, na maioria, inéditas e, como sublinha António Preto, dão conta de um “interesse síncrono com a sua actividade cinematográfica”.
Vale a pena lembrar que aquele é um período de actividade cinematográfica algo limitada (no número de títulos produzidos), mas longe de ser indiferente. Nele encontramos apenas uma longa-metragem, Aniki-Bóbó (1942), e várias curtas. Ora, justamente, esse é também um período em que Oliveira se interessa pela técnica das imagens cinematográficas, a ponto de assumir a direcção fotográfica de filmes como O Pintor e a Cidade (1956) e O Pão (1959).
O que encontramos nas fotografias de Oliveira tem tanto de literal como de misterioso, a começar, claro, pelos delicados registos de sua mulher, Maria Isabel Carvalhais: são verdadeiros “fragmentos de um discurso amoroso”, se nos é permitido roubar a expressão a Roland Barthes. Vemos coisas naturais e evidentes — as copas das árvores, as pedras de um muro, algumas figuras humanas em contra-luz, uma estátua, o grande plano da chama de uma vela, etc. —, sabemos o que estamos a ver e, ao mesmo tempo, sentimos que os efeitos de reconhecimento são acompanhados por uma estranheza envolvente, eminentemente sensual. Como se, ao contrário do que diz o senso comum, a pulsão realista nos colocasse em sereno contacto com o mundo dos fantasmas.
Num magnífico texto do catálogo (“Manoel de Oliveira, fotógrafo?”), Bernardo Pinto de Almeida avança com uma luminosa hipótese para explicar esse fascínio das imagens. Dir-se-ia que cada fotografia de Oliveira tem qualquer coisa de “fotogramático”, quer dizer, pertence a uma sequência de um filme ausente, como se fosse um fotograma de uma história que ficou por contar.
Um dos efeitos principais de tudo isto é a sensação de intimismo com que as fotografias de Oliveira nos envolvem. Podemos, aliás, arriscar dizer que tal sensação projecta o olhar numa dimensão que, não sendo estranha à vibração dos corpos, nos coloca em contacto com algo a que, com contido atrevimento, podemos dar um nome mágico: a alma. Sem esquecer que, no filme Francisca (1981), a personagem de Fanny Owen nos deixou um aviso pedagógico: “A alma é um vício.”