segunda-feira, novembro 16, 2020

As palavras de Stanley Kubrick

Eis uma preciosa lição de cinema que passou no Doclisboa, Kubrick by Kubrick propõe uma fascinante memória do autor de 2001: Odisseia no Espaço, tendo como base os seus diálogos com o crítico Michel Ciment — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Outubro).

Ainda que involuntariamente, cada cineasta gera a sua própria mitologia. No caso de Stanley Kubrick (1928-1999), a imagem de eremita cola-se à sua biografia como uma segunda natureza. Afinal de contas, ele foi o cineasta americano que se “exilou” em Inglaterra, tendo rodado mais de metade da sua filmografia em estúdios nos arredores de Londres — de Lolita (1962) a De Olhos Bem Fechados (1999), passando, claro, por 2001: Odisseia no Espaço (1968). 
Daí que Kubrick seja muitas vezes referido como o “cineasta que não dava entrevistas” ou que, no mínimo, resistia a quase todas as solicitações nesse sentido. Daí também o valor histórico, cinéfilo e afectivo de um filme como Kubrick by Kubrick, de Gregory Monro, programado pelo Doclisboa. Mais do que uma montagem de declarações avulsas, trata-se de uma verdadeira redescoberta de Kubrick através das suas próprias palavras. 
Em sentido literal, entenda-se: escutamos as palavras de Kubrick sem que nunca o vejamos a proferi-las. Isto porque na base do filme estão as conversas do crítico francês Michel Ciment com o realizador, em sucessivos encontros na sua casa de Hertfordshire, a cerca de 40 km do centro de Londres. Apenas munido de um gravador, Ciment, director da revista Positif (desde 1966), foi construindo uma verdadeira antologia prática e filosófica sobre o universo criativo de Kubrick. Para lá das muitas abordagens que tem dedicado aos seus filmes, ele é autor de um livro de referência, intitulado apenas Kubrick, cuja primeira edição surgiu em 1980, por altura da estreia de Shining
O dispositivo de Kubrick by Kubrick faz lembrar outro documento precioso dedicado a um grande cineasta: Hitchcock/Truffaut (2015), filme de Kent Jones sobre as conversas gravadas entre Alfred Hitchcock e François Truffaut que deram origem ao livro Le Cinéma selon Alfred Hitchcock, editado em 1966. Também aqui vemos o entrevistado nas mais diversas situações de trabalho ou em eventos sociais, sem que haja imagens filmadas durante as próprias conversas (embora, no caso de Hitchcock, existam magníficos testemunhos fotográficos de Philippe Halsman). 
Para os resultados documentais, a “ausência” do protagonista não é indiferente. Desde logo, porque Kubrick não esconde a sua relutância em “explicar” os filmes, fazendo questão em sublinhar a margem de arbitrariedade que pode levar à escolha de um ou outro projecto. Ao mesmo tempo, vamos assistindo à edificação de um sistema de pensamento que talvez se possa definir a partir de uma sugestiva duplicidade: por um lado, o seu gosto pela abordagem realista das situações de cada filme, mesmo as mais artificiosas, gosto enraizado no trabalho de fotojornalista que desenvolveu na juventude, aprendendo a trabalhar com fontes de luz natural; por outro lado, o entendimento da narrativa como um peculiar labor de envolvimento emocional do espectador (“Num trabalho de ficção, é preciso haver conflito. Se não existir uma qualquer tensão na história, em boa verdade, nem sequer temos uma história.”). 
Além de pontuar as cenas com curiosas “reconstituições” de cenários emblemáticos (com destaque para o “quarto branco” do final de 2001) e de recuperar extratos de diversas entrevistas com actores e técnicos, Kubrick by Kubrick acaba por funcionar como uma paradoxal e fascinante celebração do valor da palavra — o que se apresenta como tanto mais irónico quanto Kubrick é, muito justamente, reconhecido como um dos mais geniais criadores visuais da história do cinema. Num tempo em que muitos espectadores são (des)educados a supor que um filme não passa da colagem mais ou menos anódina de fragmentos disponíveis no YouTube, Kubrick by Kubrick propõe uma belíssima lição de cinema.
Numa das entrevistas integradas na montagem, dada a um canal televisivo francês, Ciment resume de forma modelar a complexidade “kubrickiana”: “Como todos os grandes cineastas, ele possui o sentido do espaço e o sentido do tempo. Ou seja, é preciso saber compor a imagem — é a arte da fotografia; depois, é preciso desenvolver o tempo de uma narrativa.” Relembrando os gostos do próprio Kubrick, Ciment acrescenta: “É a arte do xadrez, e é também a arte do jazz.”