Com o filme Hitchcock/Truffaut, de Kent Jones, revisitamos a génese de um livro central na história do cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Dezembro), com o título 'O fascínio de uma conversa entre Hitchcock e Truffaut'.
Os cinéfilos gostam de dizer que Alfred Hitchcock (1899-1980) se define, antes do mais, pela peculiar energia das sua imagens: face a um qualquer plano dos seus filmes, sentimos um misto de transparência e inquietação que, para além do admirável sentido de composição, envolve a capacidade de desafiar e perverter as evidências do mundo à nossa volta. Agora, graças a um delicioso paradoxo, podemos redescobri-lo, não apenas com imagens, mas também através do som das suas palavras registadas há mais de meio século — assim acontece no documentário realizado pelo crítico e programador Kent Jones, Hitchcock/Truffaut.
François Truffaut (1932-1984), figura nuclear da Nova Vaga francesa, foi um dos mais fiéis e talentosos discípulos do “mestre do suspense”. Vários dos seus filmes, com destaque para o emblemático A Noiva Estava de Luto (1968), mostram como soube integrar as lições “hitchcockianas” sobre a emoção essencial de cada imagem e o poder narrativo do trabalho de montagem.
Hitchcock/Truffaut tem a ver com o trabalho de Truffaut como crítico de cinema nas páginas da revista Cahiers du Cinéma, a par de Jean-Luc Godard, Claude Chabrol ou Eric Rohmer, e o seu empenho em reconhecer o valor de alguns mestres do cinema clássico de Hollywood, incluindo Howard Hawks, Otto Preminger e, claro, Hitchcock. Em 1962, já com obra como realizador (estreara-se em 1959, com Os 400 Golpes), Truffaut decidiu enviar uma carta a Hitchcock, manifestando-lhe a sua profunda admiração e apresentando um projecto de entrevista fora do comum: teria lugar durante oito dias e daria origem a cerca de 30 horas de gravação. Objectivo: não uma série de artigos, mas um livro.
Hitchcock sentiu-se honrado pela proposta e aceitou. A 13 de Agosto de 1962 (data do 63º aniversário de Hitchcock), os dois cineastas, auxiliados pela tradutora Helen Scott, iniciaram um diálogo que estaria na base de Le Cinéma selon Alfred Hitchcock, publicado em 1966, por certo ainda hoje um dos mais famosos e mais influentes livros de cinema — o filme de Kent Jones tem como ponto de partida as fitas gravadas da longa e fascinante conversa que teve lugar num gabinete dos estúdios Universal, em Hollywood.
A realidade e o sonho
Para além do livro, cuja “edição definitiva” surgiu em 1993 (com chancela da Gallimard), conhecíamos o encontro de Hitchcock e Truffaut através das fotografias de Philippe Halsman. Mas nunca tínhamos podido escutar as vozes dos dois homens, devidamente auxiliados pela sempre rigorosa Helen Scott.
O filme de Kent Jones está longe de se satisfazer com a mera “ilustração” da conversa, preferindo antes utilizar os extractos escolhidos para celebrar o génio narrativo de Hitchcock. Redescobrimos, assim, o romantismo da fase inglesa em Jovem e Inocente (1937), os movimentos de câmara de Difamação (1946), a célebre cena do chuveiro em Psico (1960) e outras proezas que definem uma sofisticada arte de contar histórias (cinco filmes de Hitchcock são propostos, em simultâneo, pela Cinemateca). Muito mais do que uma colecção de curiosidades, são marcas de uma visão do mundo cuja singularidade abriu fascinantes perspectivas à arte cinematográfica, influenciando várias gerações de cineastas.
Alguns desses cineastas passam, aliás, pelo filme de Kent Jones. Martin Scorsese, David Fincher, Arnaud Desplechin, Peter Bogdanovich e Paul Schrader, entre outros, dão conta da influência de Hitchcock e, em particular, do modo como as suas invenções (técnicas & estéticas) consagraram o cinema como um trabalho que está muito para além da “reprodução” do mundo.
“Nunca estou satisfeito com o que é vulgar”, diz Hitchcock a Truffaut. Aquilo que o interessa é a manifestação do “excepcional”, quer dizer, dos gestos e sinais que, desafiando a transparência do mundo, implicam também uma discussão das imagens (e dos sons) do cinema. No limite, Hitchcock ensinou-nos que entre a realidade e o sonho, porventura o pesadelo, todas as fronteiras são ilusórias.