domingo, junho 14, 2020

O escândalo de Luis Buñuel

Silvia Pinal
O ANJO EXTERMINADOR
Depois do confinamento, vários filmes de Luis Buñuel estão a regressar às salas escuras. Entre eles está O Anjo Exterminador (1962), por certo um dos seus trabalhos mais exemplares sobre o que é, ou pode ser, a liberdade criativa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Junho).

Vem aí um filme que, por ingenuidade ou perversão, não poderemos deixar de associar à situação de confinamento que a pandemia nos fez viver. Não é uma revelação absoluta, mesmo se, ironicamente (ou tragicamente…), não deixa de ser uma estreia comercial nas salas portuguesas. Tem data de 1962, chama-se O Anjo Exterminador e é uma das obras-primas que Luis Buñuel (1900-1983) nos legou. Surge, aliás, integrado num belo ciclo de uma dezena de títulos do cineasta espanhol, evento programado para Lisboa (Nimas) e Porto (Teatro Municipal Campo Alegre), a partir do dia 11, circulando depois por várias cidades do país.
Há, de facto, uma forma de confinamento em O Anjo Exterminador, afinal incomparável com as nossas recentes vivências, porque mais insólita e, sobretudo, muitíssimo mais divertida. Para simplificar, digamos que esta é a história de um grupo de personagens “aristocratas” ou, pelo menos, de uma classe dirigente, que não saem do palacete onde se reuniram para um jantar festivo porque… não conseguem sair… Aliás, o humor de Buñuel é qualquer coisa que, mais do que nunca, importa reconhecer e celebrar, quanto mais não seja porque nasce, não de um banal jogo de caricaturas, antes de um processo criativo que nos leva a questionar as ideias feitas (sobretudo mal feitas) acerca do mundo à nossa volta.
Pergunto-me se a fase da obra (e da vida) de Buñuel em que surge O Anjo Exterminador não envolve algo que é também uma forma de confinamento ou, mais precisamente, de procura de um lugar de liberdade para concretizar os seus filmes. Recorde-se que, ao longo dos anos 50, as raízes de produção do seu trabalho são, sobretudo, mexicanas. Foi no México que, entre outros títulos, realizou o prodigioso Ensaio de um Crime (1955), vindo a concretizar Viridiana (1960) através de uma coprodução México/Espanha.
Vale a pena lembrar que Viridiana arrebatou a Palma de Ouro em Cannes e… foi proibido em Espanha pelo governo do Generalíssimo Franco (onde só seria estreado em 1977, dois anos após a morte do ditador). O produtor de Viridiana, Gustavo Alatriste, e a sua mulher, Silvia Pinal, intérprete principal do filme, renovariam a aliança com Buñuel, logo a seguir concretizando O Anjo Exterminador e, mais tarde, em 1965, Simão do Deserto (que também integra este ciclo).
Que se passa, então, com as personagens de Buñuel? Pois bem, vivem uma situação que, de tão estranha, apela à metáfora. Daí as perguntas mais ou menos infinitas… Por que não conseguem sair do lugar daquela festa? Que faz com que, mesmo quebrando vidros e derrubando paredes, se mantenham enclausurados? Alguém os fechou ou estão a ser alvo de alguma maldição?
Talvez seja prudente referir que, desde o seu lançamento, o filme tem sido acompanhado por uma “explicação” que, convenhamos, não deixa de ter uma óbvia motivação histórica: Buñuel estaria a colocar em cena as classes dirigentes da ditadura franquista, sugerindo que a sua existência as ia encaminhando para um beco sem saída. Dito de outro modo: para a queda do regime que, de alguma maneira, sustentavam.
Mas vale a pena revisitar O Anjo Exterminador com o espírito aberto. Entenda-se: lembrando que um filme, mesmo avaliando situações muito reais, não se esgota numa “mensagem”. Aliás, se os filmes se reduzissem a uma “mensagem”, como alguém já disse, mais valia usar os correios…
Retomando os valores narrativos dos seus primeiros filmes ligados ao movimento surrealista — com óbvio destaque para Un Chien Andalou (1929), com a colaboração de Salvador Dali —, Buñuel reafirma o cinema, não como uma forma de atribuir “significados” às coisas do mundo, mas de os suspender. Perguntando: e se nenhum destino pudesse redimir o ser humano das contradições da sua existência?
Muito para lá da discussão das certezas do catolicismo, tema transversal na sua obra (de que Viridiana é, justamente, um momento chave), ele abre-nos as portas de um mundo em que, de facto, existem dominantes e dominados, ricos e pobres, inocentes e culpados… e o sentido de tudo isso é não fazer sentido. Daí o absurdo, daí o humor, daí o desejo de liberdade que a narrativa transporta. Liberdade de olhar. Liberdade de pensar. É esse o renovado escândalo de Buñuel.