J’Accuse - O Oficial e o Espião revisita o célebre “Caso Dreyfus”, em finais do século XIX, quando um militar francês de origem judaica foi injustamente acusado de traição; Roman Polanski realizou o filme a partir do livro de Robert Harris — este texto foi publicado no Diário de Notícias.
O mínimo que se pode dizer de J’Accuse - O Oficial e o Espião, de Roman Polanski, é que se trata de um filme contra a corrente. Desde logo, contra a noção de que o espectáculo cinematográfico não passa de uma sucessão de super-heróis fabricados com efeitos especiais… Afinal, há histórias de gente viva que vale a pena contar, continuar a contar. Mais do que isso: estamos perante um retorno, tão sereno quanto sofisticado, a uma arte narrativa que continua a acreditar nas virtudes do cinema como espelho crítico das convulsões da história colectiva.
Podemos classificar essa crença como primitiva? Sim, sem dúvida, creio mesmo que podemos e devemos resistir à futilidade de alguns “modernismos” digitais (mesmo não esquecendo as muitas maravilhas que as novas tecnologias têm gerado). J’Accuse - O Oficial e o Espião é um filme marcado por tensões emocionais que remontam à ideia fundadora do cinema como “coisa” próxima da vida, ao mesmo tempo capaz de ser maior que a vida.
E tanto mais quanto Polanski propõe um elaborado reencontro com o célebre “Affaire Dreyfus”, saga de um oficial do exército francês que, através de uma conjugação de preconceitos contra os judeus e perversas manipulações de bastidores, foi alvo de um cruel processo de difamação. Na história moral da França e, em boa verdade, da Europa, este é um capítulo de perturbante dramatismo, há muito inscrito na memória colectiva.
Polanski está longe de santificar a personagem de Alfred Dreyfus (1859-1935). Num certo sentido, pode mesmo dizer-se que ele é uma marioneta distante, nem sequer muito simpática, que conhecemos menos pelos seus actos e mais através das acções das outras personagens. E há, evidentemente, um inteligente golpe dramatúrgico na escolha de Louis Garrel para interpretar Dreyfus: sendo Garrel uma figura muitas vezes associada a um certo “visual” de sedução (publicitária ou não), Polanski trabalha a sua imagem alheando-se do cliché, com a frieza de quem cria uma escultura abstracta — o que, entenda-se, não é estranho à talentosa versatilidade do actor.
Tal “secundarização” de Dreyfus decorre, como é óbvio, da subtil arquitectura do argumento, baseado no livro de Robert Harris, O Oficial e o Espião (Ed. Presença); aliás, a autoria do argumento é partilhada por Harris e Polanski. Desde o primeiro momento, trata-se menos de seguir o calvário de Dreyfus e mais de conhecer o modo como foi cimentado o processo da sua culpa profissional e consequente culpabilização social.
Daí o peso decisivo da personagem do coronel Georges Picquart, exemplarmente interpretado por Jean Dujardin (o actor francês “oscarizado” em 2012, pela sua composição em O Artista). A saber: Picquart não é, de modo algum, o agente de qualquer forma de revolta contra o próprio colectivo a que pertence. Bem pelo contrário: é em nome das regras desse colectivo que ele se empenha na demonstração da inocência de Dreyfus.
Acusado de espionagem em favor da Alemanha, em 1894 (só seria ilibado em 1906), Dreyfus surge, assim, como o “ponto de fuga” de todo um sistema militar, político e judicial que nele encontra um bode expiatório das suas próprias contradições internas. Mais do que isso: Dreyfus é tratado como símbolo de uma “corrupção" que esse mesmo sistema castiga para preservar a sua utópica “pureza”.
Polanski “corrigiu” o título original do livro de Harris (An Officer and a Spy). Assim, no original francês, o filme intitula-se apenas J’Accuse. E faz todo o sentido que, entre nós, se tenha preservado essa afirmação contundente na primeira pessoa que, como é sabido, resume a decisiva viragem na reposição da verdade do “caso Dreyfus”: “J’Accuse” serviu de título à carta aberta do escritor Émile Zola a Félix Faure, Presidente da França, publicada a 13 de Janeiro de 1898, no jornal L’Aurore, acusando o governo francês de anti-semitismo e denunciando a prisão sem fundamento de Dreyfus.
Este é, afinal, um ponto de decisiva importância, também ele contrário aos valores correntes das narrativas industrial e comercialmente mais poderosas. Estamos perante um filme que revaloriza a energia da escrita, expondo o modo como o seu papel público pode ser decisivo na configuração da história, seja ela individual ou colectiva. Nesta perspectiva, J’Accuse - O Oficial e o Espião é também uma celebração do poder ancestral das palavras.