[28 Fev. 2020] |
1. Pergunta perversa: será que ao fazerem o balanço da eliminação das equipas portuguesas da Liga Europa, os responsáveis do jornal A Bola reflectiram sobre o facto de estarem a aplicar uma expressão — Portugal dos Pequenitos — que nos remete directamente para a história cultural do Estado Novo?
2. Quero acreditar que sim. Por isso mesmo, creio que devemos saudar a agilidade mental de A Bola, contrariando esse preconceito político (em grande parte posto a circular pela minha geração, demitindo-se das suas próprias memórias) que faz com que seja corrente evocar a ditadura salazarista apenas através de noções estupidamente abstractas: "andávamos todos calados e medrosos... e depois veio o 25 de Abril..."
3. Foi uma ditadura, é verdade. A minha geração, em particular, conheceu o assombramento de ir, ou poder ir, para os cenários de uma guerra colonial. Apesar disso — aliás, precisamente por causa disso —, importa não tratar as referências nominais ou simbólicas do Estado Novo como se fossem excrescências de linguagem que não podem ser apropriadas, aqui e agora, pelas nossas próprias linguagens.
4. Aquilo que se consagra na manchete de A Bola é, justamente, a alegria de um gesto criativo capaz de promover um sugestivo efeito de deslocação de significados e significações: a designação de um espaço institucional que nasceu para celebrar a diversidade daquilo que, para o melhor e para o pior, foi o império português, surge reconvertida em descrição literária da hecatombe protagonizada por Benfica, Porto, Sporting e Braga.
5. Enfim, ninguém é perfeito: podemos acrescentar que o rótulo de "pequenez" para descrever tal hecatombe reforça, também perversamente, essa visão infantil (jornalisticamente dominante) segundo a qual o futebol português é o melhor do mundo, apesar de, de vez em quando, lhe acontecerem estes desastres... Por mim, diria apenas que não temos equipas para lidar com a maior parte dos adversários que encontramos nas competições europeias — mas isso é um desabafo de quem já não é pequenito.