1. Decididamente, Hollywood está a alienar a energia que ajudou a colocar em marcha, ao defender e promover todas as formas de pluralidade no interior do mundo artístico. Por certo em nome da mais cândida celebração dessa pluralidade, Joaquin Phoenix veio dar um contributo trágico para tão cruel desagregação — a pureza militante, mais do que a simplificação dos factos, está a dar lugar à cegueira conceptual.
2. Foi na cerimónia dos BAFTA (os prémios da Academia Britânica das Artes Cinematográficas e Televisivas). Ao receber a distinção de melhor actor pelo seu trabalho em Joker, Phoenix lançou-se num arrazoado totalmente deslocado e contraproducente, considerando que "nós" (quem?) "estamos a lançar uma clara mensagem às pessoas de cor, dizendo-lhes que não são bem-vindas aqui." Mais do que isso, aquela situação (a aceitação do seu prémio?) seria sintoma de um cínico "tratamento preferencial" porque, argumentou ele, "é isso que oferecemos a nós próprios todos os anos" (quem, os brancos?) — em qualquer caso, convém conhecer estas palavras em contexto [video].
3. Sabemos que há componentes racistas na história de Hollywood. Afinal de contas, como separar a "fábrica de sonhos" da história da nação que a gerou? Sabemos também, convém acrescentar (e poucas vezes isso tem sido lembrado), que muitas formas de superação narrativa, política e simbólica da marginalização de minorias sociais ou de género passam pela história frondosa e fascinante de... Hollywood.
4. O certo é que nada disso parece tocar o discurso de Phoenix — será que ele se dá ao luxo de ignorar que a adaptação de To Kill a Mockinbird, de Harper Lee, foi filmada por Robert Mulligan em 1962? E que esse é apenas um exemplo isolado de uma história de muitos contrastes que, para acontecer, não necessitou das militâncias dos últimos dois ou três anos? Em boa verdade, há qualquer coisa de tristemente pueril na vocação panfletária das palavras de Phoenix, acabando por reduzir a complexidade do(s) contexto(s) a uma mera aritmética de quotas, tendencialmente paternalista. O seu erro consiste em querer "corrigir" tal complexidade com o esquematismo beato das quotas.
5. Mais do que isso, Phoenix parece esquecer-se de uma hipótese que valeria a pena ter em conta. A saber: talvez que os votantes o tenham premiado, não por causa da cor da sua pele, apenas porque a sua composição em Joker é de uma genialidade sem mácula. É triste ver um actor, assim, deitar fora a riqueza do seu mundo profissional com a água da ideologia.