terça-feira, fevereiro 11, 2020

No ecrã de Kirk Douglas

Kirk Douglas e Lana Turner
A memória de Kirk Douglas remete-nos para um tempo bem diferente de Hollywood e, em boa verdade, de todo o cinema: frequentávamos as salas escuras e não tínhamos telemóveis. Nostalgia? Apenas pedagogia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Fevereiro).

A morte de Kirk Douglas, contava 103 anos, traz à memória muitos momentos emblemáticos da idade de ouro de Hollywood. Entenda-se: de um cinema que não era gerido por administradores de efeitos especiais, antes vivia alicerçado num complexo sistema de práticas, narrativas e valores.
Lembro-me dele na obra-prima de Vincente Minnelli, The Bad and the Beautiful (1952), visão terna e cruel dos bastidores de Hollywood, entre nós baptizada Cativos do Mal. O papel de Douglas como Jonathan Shields, produtor capaz de reduzir os seus assalariados a meros instrumentos, ecoa de forma muito particular na sua relação com Georgia Lorrison, a actriz interpretada por Lana Turner. A dado momento, comentando um teste feito por Lorrison, Shields diz-lhe: “Sei que tenho razão sobre ti. Não te dei qualquer ajuda. O teste ficou atroz, mas por mau que fosse, provou uma coisa: quando surges no ecrã, independentemente de quem te acompanha, ou do que estás a fazer, o público está a olhar para ti. Isso é a qualidade de uma estrela…”
São palavras que ecoam como marcas de um mapa cinematográfico e cinéfilo que, através da progressiva consagração das nossas relações virtuais, se foi transformando em objecto paralisado no museu do nosso esquecimento. Desde logo, porque o ecrã a que Shields/Douglas se refere não é uma variante primitiva do telemóvel que transportamos no bolso nem do computador que se desdobra em infinitas montras abertas para uma revelação sem transcendência. Nada disso: o cinema, isto é, a sala escura existia como templo ritualizado de adoração desse imponderável ecrã — Lorrison está lá, pode até fixar-se numa utópica quietude, e não há nada que nos faça desviar o olhar.
Será sintoma de uma revolta benigna com que, em boa verdade, já não sei lidar, mas chocou-me a indiferença de alguns discursos jornalísticos face à notícia do falecimento de Kirk Douglas. Não reflectindo qualquer recente convulsão do mundo futebolístico, dir-se-ia que se tratava apenas de cumprir com um mínimo de dignidade o adeus simbólico a alguém que já não pertence a este tempo — “isso não sei, foi antes de eu nascer”, como explicam alguns jovens incautos nos concursos televisivos…
Não nos precipitemos: não é uma questão de culpabilização. Em termos político-mediáticos, perguntar “de quem é a culpa” passou a ser o tique discursivo de quem já não está disponível para pensar o que quer que seja. Nem será um esquemático confronto de valores. Acontece que Douglas pertence a um sistema de linguagens — cinematográficas, mas também narrativas, mas também humanas — que foi metodicamente retirado das nossas formas de conhecimento e comunicação. Para ele, com ele, através dele e dos seus melhores filmes, o ecrã não obedece ao nervosismo táctil do nosso consumo: o ecrã existe como paisagem habitada por imagens sedutoras e intocáveis, tanto mais sedutoras quanto a ideia de as tocar está, por definição, interdita.
Para lá desse misto de assombramento e pudor, amor e desamor, com que The Bad and the Beautiful nos dá a ver os bastidores de Hollywood, lembremos Douglas, por exemplo, enredado nas sombras de Out of the Past/O Arrependido (1947), uma das obras-primas da “Série B” dirigida por Jacques Tourneur. Ou circulando pelos lugares míticos do velho Oeste filmado por Howard Hawks em Céu Aberto (1952). Ou ainda protagonizando o admirável libelo pacifista de Stanley Kubrick, Paths of Glory/Horizontes de Glória (1957), filme que revisita os horrores da Primera Guerra Mundial num registo trágico que, por certo, Sam Mendes estudou para realizar o seu também admirável 1917.
Na prática, com alguns gestos do polegar e do indicador, qualquer um desses títulos pode aparecer, com inusitada rapidez, no ecrã do nosso telemóvel (“smart”, como nos obrigam a dizer). E porque não?… Sim, porque não? Ainda assim, talvez seja pedagógico lembrar que não era desse ecrã que Shields falava à sua Lorrison. E que, em última instância, tudo envolvia uma forma esquecida de religiosidade.