quarta-feira, janeiro 08, 2020

Memórias de Georges Franju

Foi há 60 anos que o francês Georges Franju realizou o clássico Os Olhos sem Rosto: numa variação bizarra sobre o mito de Frankenstein, deparamos com uma fábula insólita e fascinante sobre o valor da beleza — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Janeiro), com o título 'A bela é o monstro'.

Terá sido Alien - O 8º Passageiro (1979), de Ridley Scott, que consolidou uma curiosa matriz da produção industrial do cinema de terror: o monstro deixa de ser uma entidade mais ou menos inquietante que, das profundezas da terra ou a partir de uma galáxia distante, invade o espaço humano, existindo antes como “coisa” que procura o corpo (humano, precisamente) para nele se incrustar e desenvolver. E não deixa de ser sintomático observar a sua contemporaneidade com O Homem Elefante (1980), de David Lynch, filme ainda emanando do classicismo do género: aí, o monstro impõe-se como personagem comovente porque, mais do que gerador do medo, é aquele que tem mais medo.
Alien deu origem a uma magnífica tetralogia, completada por títulos de 1986, 1992 e 1997 (dirigidos, respectivamente, por James Cameron, David Fincher e Jean-Pierre Jeunet), ao mesmo tempo, para o melhor e, sobretudo, para o pior, gerando uma imensa descendência. No plano das formas, a estranheza do monstro deu muitas vezes lugar à exploração da fealdade como tique comercial. Há mesmo uma infinidade de filmes de décadas recentes que ilustram a mesma estafada sinopse: um grupo de personagens vai para uma casa isolada e começam a aparecer “seres” mais ou menos inquietantes…
A questão da fealdade, é certo, atrai uma discutível conceptualização. A beleza não é um dado objectivo ou mensurável porque, em última instância, como dizem os anglo-saxónicos, está no olhar de quem observa (“beauty is in the eye of the beholder”). Ou segundo a nossa versão, quase romântica, quase burlesca: “quem o feio ama, bonito lhe parece”.
Cerca de vinte anos antes de Alien, em 1960, Georges Franju (1912-1987), mestre bizarro e muito esquecido do cinema francês, assinava um filme em que a questão do terror, além de eminentemente carnal, envolve essa demanda angustiada de uma beleza radical. Chama-se Os Olhos sem Rosto e reapareceu agora no mercado português numa caixa de DVD (ed. Leopardo Filmes) que inclui mais três admiráveis produções da mesma época: Fim-de Semana no Ascensor (1958), policial de Louis Malle com banda sonora de Miles Davis; Dois Homens em Manhattan (1959), homenagem ao cinema “noir” de Hollywood assinada por Jean-Pierre Melville; e O Testamento de Orfeu (1960), apoteose do cinema onírico segundo Jean Cocteau.
Mary Shelley
A sinopse de Os Olhos sem Rosto é esclarecedora e sugestiva: esta é a história de um cirurgião plástico (Pierre Brasseur) que tenta desesperadamente devolver a beleza ao rosto da sua filha (Édith Scob), desfigurado num acidente de automóvel, para tal não se coibindo de instrumentalizar e, de facto, matar várias mulheres… Em boa verdade, trata-se de um insólito triângulo amoroso, uma vez que o médico conta com a cumplicidade de uma assistente (Alida Valli) e, a certa altura, com a resistência da própria filha.
Ao rever a geometria austera da “mise en scène” de Franju, não pude deixar de pensar ou, pelo menos, supor que a elegante frieza do seu cinema não conseguirá tocar as plateias que, hoje em dia, foram levadas a acreditar que a intensidade do espectáculo nasce das formas mais esquemáticas e pueris de agitação “visual”. Franju está nos antípodas dessa agitação: filma qualquer coisa de eminentemente interior, ou melhor, expõe a contradição que nasce do confronto da vulnerabilidade do corpo com um ideal de beleza que motiva, ou pode motivar, a acção humana.
Escusado será dizer que estamos perante uma derivação do Frankenstein, de Mary Shelley (publicado em 1818), com o homem de ciência, por amor da filha e, implicitamente, da própria ciência, a tentar contrariar os limites biológicos da identidade humana. Mais do que isso, podemos ver em Os Olhos sem Rosto uma variação moderna da fábula A Bela e o Monstro (que Cocteau adaptou ao cinema em 1946). Desta vez, com uma diferença impossível de racionalizar: a bela não se confronta com o monstro, a bela é o monstro.