George MacKay em 1917 |
Através de uma espectacular sofisticação técnica, o novo filme de Sam Mendes, 1917, é sobretudo um retrato invulgar da vida e da morte nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial: está na linha da frente para arrebatar o Oscar de melhor filme de 2019 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Janeiro), com o título '“1917” ou a guerra como nunca a vimos'.
Será que o cinema é essa coisa estranha e sedutora que pode ser “maior que a vida”?… Não há nenhuma resposta linear, muito menos científica, a tal pergunta. O certo é que, face a 1917, o novo filme de Sam Mendes (desde quinta-feira nas salas portuguesas), reencontramos a magia de tal expressão.
Porquê? Porque o filme não nos enreda nessa arte menor de novelas e telenovelas, tentando disfarçar a sua pequenez narrativa com a sugestão de que a vida é “mesmo” assim. E escusado será dizer que também não estamos perante a rotina entediante dos filmes de “super-heróis”, Marvel & afins, que insistem em promover o cinema como uma acumulação preguiçosa de “efeitos especiais”.
Dito de outro modo: o cinema pode ser algo que nos convoca para a vida, não porque a “reproduza”, mas porque o nele acontece… tem vida! Mais do que isso: o cinema pode ser hiper-sofisticado na sua fabricação técnica sem que isso implique qualquer endeusamento beato da própria tecnologia.
A técnica
Comecemos pela técnica, justamente. Muito se tem falado, e com toda a pertinência, do facto de Sam Mendes ter apostado em fazer o seu filme num só plano: a sua duração de perto de duas horas corresponde, de facto, a uma acção que decorre em continuidade, também ao longo de duas horas. O complexo trabalho da sua equipa, em particular desse genial director de fotografia que é Roger Deakins, atesta a grandeza do desafio [video].
Em qualquer caso, o que importa reter não é o trabalho técnico enquanto mero “fogo de artifício”. Aliás, como os seus criadores explicam, a continuidade temporal de 1917 é obtida através de diversas “takes”, mais ou menos longas, “coladas" através de uma montagem subtil que acaba por gerar essa noção de que não há interrupção temporal.
Se Sam Mendes quis contar a sua história em continuidade, isso decorre, não de qualquer forma de ostentação técnica, mas sim da necessidade (narrativa, justamente) de preservar a urgência do que está a acontecer com dois jovens elementos do exército britânico. Para Will e Tom, interpretados pelos admiráveis George MacKay e Dean-Charles Chapman, a missão de avisar um batalhão que pode estar sujeito a uma emboscada dos alemães, é vivida, em todos os sentidos, como uma luta contra o tempo.
A história
Da primeira à última imagem, 1917 é um filme assombrado pela crueza e crueldade de um conflito que, de modo algo desconcertante, não tem um peso muito significativo na história do chamado “filme-de-guerra”. Na verdade, esse é um género que, em grande parte, se definiu e consolidou através de relatos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Ao encenar um episódio da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Sam Mendes está também a fazer um exercício de prospecção histórica, talvez capaz de produzir algum efeito revelador junto das gerações de espectadores cuja noção de “acção” tem sido dramaticamente condicionada por jogos de video e aventuras de super-heróis. Além do mais, estabelecendo um laço de cumplicidade com alguns clássicos sobre o primeiro conflito mundial como Paths of Glory/Horizontes de Glória (1957), de Stanley Kubrick.
Há outra maneira de dizer isto: através do vanguardismo dos seus recursos técnicos, 1917 é um objecto primitivo de cinema — ou, talvez melhor, um objecto de cinema primitivo. O que nele se celebra não é o cinema como “reprodução” da história, antes como máquina de revisitação e reinvenção dessa história. No limite, trata-se mesmo de dar a ver a guerra como nunca a vimos [trailer].
Através da claustrofobia das trincheiras, da violência dos combates corpo a corpo e, por fim, da evidência incontornável da morte, o espectador é convocado para qualquer coisa de eminentemente físico: o cinema é, realmente, maior que a vida. Ou melhor: maior que a percepção corrente (leia-se: televisiva) da própria vida. Sendo um filme em tudo e por tudo concebido para a dimensão grandiosa de um ecrã numa sala escura, 1917 é também um dos raros exemplos de um conceito de espectáculo que adquire a sua máxima energia através da projecção numa sala IMAX.
A produção
Neste tempos em que, não poucas vezes, se fala da noção de “globalização” como uma espécie de “gadget” (económico ou político) sem conteúdo palpável, vale a pena acrescentar que 1917 é também um sugestivo exemplo de um processo realmente global de produção.
O filme tem chancela da Universal Pictures, um dos grandes estúdios da produção americana (e não deixa de ser curioso lembrar que, fundado em 1912, se trata do mais antigo sobrevivente entre os pioneiros de Hollywood). Na montagem do projecto encontramos a Amblin, de Steven Spielberg, e também o estúdio DreamWorks, de que Spielberg foi também um dos fundadores em 1994 (com Jeffrey Katzenberg e David Geffen). Trata-se, aliás, da continuação de uma já longa colaboração, iniciada em 1999 com a primeira realização de Sam Mendes, Beleza Americana — foi, aliás, com esse título que a DreamWorks ganhou o seu primeiro Oscar de melhor filme [trailer].
A estas entidades será preciso acrescentar o nome da Reliance Entertainment, estúdio da Índia com uma presença crescente na grande produção internacional, nomeadamente através de vários títulos de Spielberg, incluindo Lincoln (2012) e A Ponte dos Espiões (2015).
Pois bem, nada disto é produto do acaso, uma vez que Spielberg foi uma das primeiras personalidades de Hollywood a ter a clara percepção de que os mercados asiáticos iriam desempenhar um papel cada vez mais importante na economia global do cinema. Na verdade, Spielberg estabeleceu um acordo de produção com a Reliance há mais de uma década, em 2009, envolvendo uma verba de 1,5 mil milhões de dólares (qualquer coisa como 1,35 mil milhões de euros). Se 1917 confirmar a maior parte das apostas e arrebatar o Oscar de melhor filme do ano, é caso para dizer que, pelo menos desta vez, será mesmo o triunfo de uma bela ideia de globalização.