Harvey Keitel, Joe Pesci, Robert De Niro, Martin Scorsese e Al Pacino |
Com O Irlandês, de Martin Scorsese, a plataforma Netflix tem por sua conta um dos grandes filmes dos últimos tempos. Apostar no filme para os Oscars principais será, obviamente, um objectivo fundamental: resta saber quais os efeitos das discussões em torno de circuitos tradicionais e plataformas de “streaming” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Novembro).
O menos que se pode dizer do novo filme de Martin Scorsese, O Irlandês, sobre as relações entre o sindicalismo americano e a mafia nos tempos de Jimmy Hoffa, é que estamos perante um dos grandes acontecimentos cinematográficos de 2019. Ao mesmo tempo, o facto de, em muitos países (incluindo Portugal), só poder ser visto na Netflix coloca-o no centro de um debate actualíssimo. A saber: quais as relações que se podem estabelecer entre os circuitos clássicos das salas e as plataformas de “streaming”? Ou ainda: como equilibrar os interesses legítimos das entidades envolvidas neste processo, sem excluir qualquer modelo de consumo do cinema?
No plano simbólico, é óbvio que, para a Netflix, O Irlandês pode vir a ser um inestimável trunfo de prestígio. Como? Se conquistar o Oscar de melhor filme de 2019 (a atribuir na cerimónia da Academia de Hollywood marcada para 9 de Fevereiro de 2020).
Em boa verdade, tratar-se do renovar de uma estratégia ambiciosa que, há cerca de um ano, já foi protagonizada por outro título forte da Netflix: Roma, de Alfonso Cuarón. O filme não conseguiu arrebatar o prémio máximo, mas ganhou em três categorias importantes: filme estrangeiro, realização e fotografia (este último, também para Cuarón).
É sabido que, no interior da Academia, há vozes discordantes sobre o facto de os filmes gerados pelas plataformas de “streaming” poderem concorrer a par daqueles que nascem das tradicionais estruturas de produção — Steven Spielberg tem sido uma dessas vozes, e das mais veementes. Seja como for, não parece possível que um filme com a riqueza temática e o fôlego dramático de O Irlandês, para mais com um elenco liderado por Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci, possa ficar fora das nomeações em muitas categorias.
Para além do Oscar de melhor filme do ano, eis cinco dessas categorias em que os trunfos de O Irlandês são especialmente fortes:
* REALIZAÇÃO: escusado será lembrar que Martin Scorsese é um dos realizadores mais respeitados no interior do sistema de Hollywood. A polémica sobre as produções Marvel em que tem estado envolvido (considerando que os respectivos produtos “já não são cinema”) não abalou essa posição e é bem possível que ele arrecade a sua segunda estatueta dourada nesta categoria, treze anos depois do triunfo com The Departed - Entre Inimigos (que foi também consagrado como melhor filme de 2006).
* ACTOR: será difícil, mas por certo não impossível, que Robert De Niro e Al Pacino sejam ambos nomeados nesta categoria. Aconteça o que acontecer, já foram “oscarizados”: De Niro como actor secundário em O Padrinho: Parte II (1974), de Francis Ford Coppola, e principal em Touro Enraivecido (1980), também de Scorsese; Pacino como actor principal em Perfume de Mulher (1992), de Martin Brest.
* FOTOGRAFIA: o director de fotografia de O Irlandês, o mexicano Rodrigo Prieto, é um dos grandes mestres das imagens no cinema contemporâneo. Esta é a sua terceira colaboração com Scorsese, depois de O Lobo de Wall Street (2013) e Silêncio (2016); este último valeu-lhe uma nomeação, a segunda da sua carreira, mas nunca ganhou.
* MONTAGEM: Thelma Schoonmaker é, há mais de três décadas, a fundamental colaboradora de Scorsese nas tarefas de montagem. Com os seus filmes ganhou três Oscars: Touro Enraivecido (1980), O Aviador (2004) e The Departed - Entre Inimigos (2006). A complexidade narrativa de O Irlandês, tecida a partir de um verdadeiro labirinto temporal, coloca-a na linha da frente para vencer nesta categoria.
* CARACTERIZAÇÃO ou EFEITOS VISUAIS: eis um dos enigmas que o próprio filme instala na definição institucional dos prémios. Assim, como tem sido amplamente noticiado, para interpretarem as cenas do passado, os actores principais foram “rejuvenescidos” através de efeitos especiais (em particular no rosto). Nas entrevistas sobre o filme, Scorsese, De Niro e Pacino têm insistido numa ideia muito pragmática, afinal plena de lógica: trata-se apenas de uma nova forma de maquilhagem… Sem dúvida, mas quando essa maquilhagem resulta também de elaboradas manipulações digitais, em que área dos Oscars fará sentido inserir o respectivo trabalho? O simples facto de a pergunta surgir é revelador da dimensão experimental que O Irlandês também tem.