terça-feira, outubro 29, 2019

Woody Allen em Nova Iorque
— sempre, para sempre

Timothée Chalamet + Elle Fanning
Com ternura e desencanto, Woody Allen continua a filmar histórias de amor na sua cidade: Um Dia de Chuva em Nova Iorque é um dos maiores acontecimentos cinematográficos deste ano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Outubro).

Romantismo? A palavra está gasta, usada e abusada pelos “famosos”, pervertida na sua história e simbologia pela publicidade que encena pares amorosos a descobrir o sentido da vida através de uma nova aplicação de telemóvel… Enfim, não desesperemos. Pelo menos nas histórias que os filmes contam, ainda há quem acredite numa réstia de romantismo. É o caso de Woody Allen. O seu símbolo romântico, por excelência, não é uma pessoa, mas uma cidade: Nova Iorque.
Assim aconteceu em Annie Hall (1977), Manhattan (1979) ou Celebridades (1998), para apenas citarmos alguns dos títulos mais óbvios. Agora, com Um Dia de Chuva em Nova Iorque, 50ª longa-metragem da sua filmografia, Woody Allen, à beira de completar 84 anos (no dia 1 de Dezembro), reafirma uma obstinada crença romântica em Nova Iorque, mesmo se a sua visão das personagens se apresenta marcada por um paciente e pedagógico desencanto.
Observe-se o par central deste filme. Gatsby e Ashleigh são jovens namorados, estudam na mesma universidade e partem para uma breve deslocação a Nova Iorque; para o desenvolvimento de um trabalho de investigação, Ashleigh conseguiu agendar um encontro com um conhecido realizador de cinema, propondo-se Gatsby aproveitar a ocasião para lhe mostrar alguns dos locais mais emblemáticos (e também mais caros) de Nova Iorque…
Digamos, para simplificar, que Timothée Chalamet e Elle Fanning — intérpretes de Gatsby e Ashleigh — raras vezes tiveram a possibilidade de trabalhar personagens que, como estas, combinam a transparência emocional com um radical mistério existencial. A prodigiosa performance de Fanning, em particular, consegue expor uma candura emocional que, a pouco e pouco, vai sendo marcada pelas agruras que o dia a dia não programa, muito menos anuncia. Isto porque o génio narrativo de Woody Allen, a sua capacidade de transfigurar a ligeireza do mais banal quotidiano em espelho das convulsões da alma humana, se confunde com um cepticismo cada vez mais paradoxal.
Que filma, então, Woody Allen? Uma comédia romântica, sem dúvida, de uma maneira ou de outra filiada na nobre tradição de Hollywood que passa pelo trabalho de cineastas como Vincente Minnelli, George Cukor ou Blake Edwards. E não há dúvida que a espantosa direcção fotográfica de Vittorio Storaro nos remete para as memórias visuais e melodramáticas de muitos dos respectivos filmes.
Mas se esse foi um género de alegre redenção (o que, convenhamos, pode ser discutido…), em Um Dia de Chuva em Nova Iorque, mesmo através do subtil humor de muitas das suas cenas, deparamos com a gélida revelação das muitas formas de falsidade que as relações humanas contêm ou alimentam — Gatsby e Ashleigh definem um par romântico para o século XXI, mas o tempo presente não confirma a mitologia que os inspira.
Cenas como a conversa de Ashleigh com o cineasta que não está nos seus melhores dias, ou o antológico diálogo em que a mãe de Gatsby lhe revela os segredos do seu passado, são exemplos modelares de uma sublime arte narrativa. Woody Allen não desiste de retratar os humanos sem excluir qualquer uma das suas imperfeições, não desistindo também de fazer valer uma ternura que circula nos interstícios das relações humanas, sempre com destino incerto.
Sinal dos tempos: as ruas das nossas cidades enchem-se de cartazes a celebrar super-heróis esvaziados de qualquer humanidade, mas o grande cinema americano está aqui, através do labor de um cineasta que se mantém fiel às suas raízes artísticas. Dito de forma simples, simplesmente cinematográfica: Um Dia de Chuva em Nova Iorque é um dos grandes filmes de 2019.