Alfred Hitchcock |
De uma maneira ou de outra, todos nos convertemos ao “streaming”. A Netflix tornou-se um protagonista do audiovisual, mas o fenómeno é muito mais vasto: estamos cada vez mais a consumir séries e filmes nas plataformas digitais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Setembro).
Nos primeiros meses de 2013, nasceu um novo modelo de espectador. Seria uma nova forma de ser telespectador, uma vez que tudo estava a acontecer no recato do lar, face aos ecrãs de televisão, mas a própria noção clássica de “telespectador” era insuficiente para dar conta do fenómeno. Os seus protagonistas (no mercado dos EUA, antes do mais) tinham à sua disposição, não o primeiro episódio de uma nova série que viria a ter enorme impacto — o seu nome: House of Cards —, mas todos os 13 episódios da primeira temporada. O acompanhamento semana após semana dava lugar a uma espécie de consumo instantâneo.
Há outra maneira de contar o que aconteceu — é uma história realista povoada de fantasmas. Na origem do fenómeno não estava um tradicional canal de televisão, mas algo que adoptava uma designação algo bizarra que, em poucos anos, se transformaria numa expressão corrente do universo global de consumo. A saber: uma plataforma de “streaming”. Ou ainda: a Netflix.
Já não estamos a falar apenas de uma alternativa pontual para consumir os mais variados produtos audiovisuais. Quanto mais não seja porque a estatística nos dá conta de uma globalização avassaladora: em Abril de 2019, a Netflix estava à beira de garantir 150 milhões de assinantes em todo o mundo (incluindo 60 milhões nos EUA).
Vale a pena lembrar que nas décadas de 50/60 se viveu uma outra idade de ouro das séries televisivas, com uma lógica bem diferente. Lembremos apenas os exemplos de Alfred Hitchcock Presents (1955-65) ou Rawhide (1959-65). São referências de uma época em que o mercado cinematográfico lançava as suas épicas superproduções (Lawrence da Arábia, A Queda do Império Romano, etc.), precisamente para enfrentar a concorrência crescente da televisão. Ao mesmo tempo, o objectivo daquelas séries era a rentabilização de modelos consagrados pelo cinema clássico: no primeiro caso, prolongando as elucubrações do mestre do “suspense”; no segundo, recriando ambientes do mundo dos cowboys (e revelando um ilustre desconhecido chamado Clint Eastwood…).
Claro que este resumo esquemático não esgota a pluralidade de uma evolução que envolve também canais especializados como a HBO, tudo contribuindo para que, ao longo das últimas décadas, se tenham consolidado também outros paradigmas de consumo. Quando nos recordamos, por exemplo, do impacto da mini-série Holocausto (1978) ou das seis temporadas de Os Sopranos (1999-2007), compreendemos que tem havido genuínos fenómenos de culto ligados às mais diversas formas de consumo caseiro, incluindo as cassetes de video, depois o DVD e o Blu-ray, e finalmente o “streaming” a que, de uma maneira ou de outra, todos nos convertemos.
Nesta odisseia, a Netflix tem sido, de uma só vez, o anjo e o demónio. A sua oferta, alicerçada numa produção própria cada vez mais importante, criou uma verdadeira filmoteca virtual. Ao mesmo tempo, toda a sua estratégia de difusão tem sido marcada por uma enorme resistência a ceder os seus filmes aos circuitos clássicos de exibição; neste momento, o lançamento de O Irlandês, de Martin Scorsese, com Robert De Niro e Al Pacino, constitui a pedra de toque de todo esse processo — agendado para Novembro, será exibido apenas em “salas seleccionadas”, aparentemente não satisfazendo a vontade, expressa pelo próprio Scorsese, de uma estreia alargada…
Ainda assim, a Netflix está longe de esgotar a questão. Estamos a viver aquela que será, talvez, a pré-história da idade de ouro das plataformas digitais, quanto mais não seja porque temos assistido a uma significativa multiplicação de protagonistas e a uma consequente proliferação da oferta.
Será difícil considerar que tal oferta decorre de uma estratégia de escolhas claramente definida. Nesta fase, o empenho de atrair os consumidores através de um grande número de títulos parece mais importante do que a definição de tendências (temáticas, estéticas, autorais, etc.). Seja como for, “ele” anda por aí… Quem? O “streaming”, precisamente.
Entidades como a Amazon ou a Apple TV+ estão a investir muitos milhões para consolidar uma posição forte num mercado em expansão. Sem esquecer, claro, a Disney+ que, além do vasto património gerado desde os tempos de Walt Disney, conta agora no seu universo de produção com entidades de decisiva importância financeira como a Marvel ou a “franchise” Star Wars. Vamos todos, por certo, desfrutar das maravilhas prometidas. Resta saber se, no limite mais drástico desta evolução, vamos também aceitar que a grandeza física e a respiração trágica de filmes como Os Dez Mandamentos (1956) ou Apocalypse Now (1979) podem até “caber” no pequeno rectângulo do nosso telemóvel… Será que vamos perder o gosto de estar numa sala de cinema?