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O burlesco já não é o que era. Quando vemos a fotografia de Donald Trump a apoiar-se em Boris Johnson para enfrentar um lanço de escadas, compreendemos que o burlesco mudou de cenário. E não é a reunião dos G7 que define tal cenário: o que está inscrito na história do cinema como uma sofisticada linguagem de desafio aos limites físicos e simbólicos do corpo passou a existir como elemento mais ou menos hilariante (burlesco, justamente) do nosso espaço mediático.
Que aconteceu, então? Não é fácil lidar com o burlesco, quanto mais não seja porque tudo o que envolve a comédia e o riso tende a ser socialmente celebrado como "entretenimento", logo alheio a qualquer derivação intelectual. E por aí começam equívocos e incompreensões. Porquê? Porque a inscrição do burlesco na cultura popular não anula o facto de a sua linguagem envolver uma especial capacidade de abstração intelectual.
Lembremos a referência óbvia dos filmes da Keystone Film Company de Mack Sennett, produzidos há mais de um século (até 1917). As célebres e aceleradas perseguições desencadeadas pelos polícias ("Keystone Cops") não se limitavam a ser uma acumulação de correrias e trambolhões [foto]. O seu funcionamento pressupõe sempre que tais atribulações decorrem de uma determinada ordem social e legal, conceito intelectual entre todos. Dito de outro modo: são filmes sobre a possibilidade de reposição da ordem, sendo o riso uma expressão visceral do misto de necessidade e fragilidade que reconhecemos nessa mesma ordem.
Escusado será acrescentar que, de Charlie Chaplin a Jerry Lewis, sem esquecer o genial Buster Keaton, esse poder revelador está presente em toda a história do burlesco. Os sinais mais evidentes das suas encenações nunca são alheios a uma estranheza genuinamente humana que começa na dificuldade de compreendermos as mensagens que recebemos do nosso próprio corpo. Veja-se ou reveja-se O Homem das Mulheres (1961), obra-prima de e com Jerry Lewis [poster] — será preciso sublinhar que todos os acidentes e incidentes que ele protagoniza decorrem da dificuldade, potencialmente trágica, de lidar com o universo feminino?
Trump e Johnson pertencem a outro mundo, vivem através de outro sistema de linguagem. Claro que neles encontramos a verdade mais primitiva do burlesco. A saber: o corpo é esse elemento visível, mas imponderável, que em qualquer momento pode pôr em causa o nosso papel no interior de um determinado evento, grupo ou comunidade. Dito de forma muito simples: a possibilidade de os dois líderes políticos caírem escada abaixo faz parte do humor que, de modo mais ou menos consciente, associamos à imagem.
Acontece que, agora, neste tempo em que a velocidade da informação tende a desqualificar o próprio trabalho informativo, a esmagadora maioria dos eventos que vemos obedece a uma lógica de spot publicitário: o que conta não é a "mensagem" que se passa, mas apenas a criação de uma agitação efémera cuja vibração possa gerar uma infinita circulação. E não há dúvida de que Trump e Johnson são mestres dessa arte menor de protagonizar imagens suscetíveis de alimentar os nossos circuitos virtuais. A imagem adquiriu mesmo um funcionamento idêntico ao chamado soundbite: o que se diz (ou mostra) pode ser vazio, até mesmo liminarmente estúpido, mas a sua multiplicação mediática confere uma espécie de dignidade abstrata a quem o gerou.
Surgem, assim, duas questões perturbantes. A primeira é ancestral na vida do jornalismo e, como é óbvio, não pode ser pensada apenas a partir de exemplos mais ou menos anedóticos como esta fotografia: trata-se de discutir, não apenas o que se mostra, mas como mostrá-lo e difundi-lo. A segunda adquiriu configurações muito particulares no novo universo "social", exponenciado pela nossa vida em rede: no limite, há mecanismos de intervenção política que passaram a aplicar uma linguagem mais ou menos burlesca. E não temos Keystone Cops para lidar com o problema.