Stacy Martin e Vincent Lindon |
Personagem frequentemente revisitada pelo cinema, Giacomo Casanova surge agora retratado pelo francês Benoît Jacquot: O Último Amor de Casanova é um conto moral sobre os limites da paixão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Agosto).
As conotações sexuais do apelido “Casanova” são esclarecedoras e transparentes: ao longo dos séculos, o veneziano Giacomo Casanova (1725-1798) foi consolidando um lugar especial na cultura europeia que o transformou em símbolo universal do impulso amoroso, seus êxtases e frustrações.
O cinema tratou-o nos mais variados registos, sendo inevitável lembrar o Casanova (1976), de Federico Fellini, com Donald Sutherland, a meu ver um dos filmes mais pessoais do cineasta italiano. Não admira que o francês Benoît Jacquot (n. 1947) se tenha interessado agora pela personagem: mais do que uma evocação histórica, O Último Amor de Casanova poderá definir-se como um conto moral sobre a ilusão de absoluto que o amor pode transportar.
Em boa verdade, se percorrermos a filmografia de Jacquot, de As Asas da Pomba (1981), baseado em Henry James, até ao recente Eva (2018), com Isabelle Huppert, a partir de um romance de James Hadley Chase, compreendemos que ele é um explorador obsessivo dessas intrigas em que o amor se confronta com as formas da sua própria insensatez.
Inspirando-se na monumental autobiografia de Casanova — História da Minha Vida (a edição integral, respeitando o texto original, só foi estabelecida em 1960-62) —, Jacquot centra o filme na fixação do protagonista na figura de Marianne de Charpillon, em Londres, em meados do século XVIII. Estamos perante um “flashback”, com Casanova a evocar, para a sua amiga Cécile, a sua angustiada paixão.
Porquê angustiada? Desde logo, porque Charpillon se apresenta como mulher de moral duvidosa (“pas fréquentable”), evitada pelos libertinos mais ricos, especialmente empenhados em não manchar a sua imagem social; depois, porque, face a ela, Casanova, conquistador militante de “todas” as mulheres, se descobre, afinal, enredado num impulso amoroso cuja intensidade é, para ele, um mistério.
Jacquot sabe evitar qualquer actualização simbólica das atribulações de Casanova. Mesmo não tendo meios espectaculares de “reconstituição”, O Último Amor de Casanova é um filme interessado nas especificidades da época que retrata, em particular nas singularidades dos corpos, seus rituais e relações. Fundamental para essa dimensão muito física de todos os momentos é o trabalho dos actores, com natural destaque para os intérpretes de Casanova e Charpillon, respectivamente Vincent Lindon e Stacy Martin.
O caso de Lindon é tanto mais interessante quanto há na sua trajectória algumas marcas de uma retórica de “excessos” dramáticos que só o tem prejudicado — lembremos o exemplo de Rodin (2017), por certo um dos maiores falhanços da obra de um cineasta tão interessante como Jacques Doillon. Em O Último Amor de Casanova, Jacquot sabe criar as condições para que Lindon se exprima num registo de paradoxal contenção, desse modo revelando a dor primordial que habita o seu corpo, neste caso sinalizando a tragédia oculta da alma.