No novo filme de Danny Boyle, Yesterday, as canções dos Beatles desapareceram da memória colectiva: a premissa é desconcertante e sugestiva, os resultados são apenas simpáticos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Junho).
No cinema, como é possível sustentar uma brincadeira absurda? Uma resposta possível será esta: aceitar o seu absurdo e partilhá-la como se fosse a coisa mais natural deste mundo... Assim é o filme Yesterday, uma comédia que se passa num mundo contemporâneo, em tudo e por tudo parecido com o nosso. Com uma “ligeira” diferença: ninguém conhece os Beatles e as suas canções!
O realizador inglês Danny Boyle gosta de desafios desta dimensão. Lembremos apenas que a sua filmografia inclui a vertigem perturbante de Trainspotting (1996), o delírio aventuroso de A Praia (2000), ou ainda essa saga admirável que é Steve Jobs (2015), com argumento de Aaron Sorkin, desenhando um retrato infinitamente subtil do génio da Apple. Em boa verdade, não creio que Yesterday esteja à altura de qualquer um dos títulos referidos. Isto apesar (ou precisamente por causa) da curiosa dimensão surreal, quase onírica, que o argumento de Richard Curtis parece ambicionar.
Curtis, também ele, é um criador de insólitas ousadias, indissociáveis da sua formação em algumas das séries cómicas mais originais da televisão britânica (por exemplo, Blackadder, com Rowan Atkinson). São dele os argumentos de sucessos como Quatro Casamentos e um Funeral (1994) e Notting Hill (1999), ou ainda O Barco do Rock (2009), evocação amarga e doce dos tempos heróicos das rádios pirata (que o próprio Curtis também realizou).
Desta vez, porém, dir-se-ia que a premissa de Yesterday se vai rarefazendo, transformando o bloco central da narrativa numa antologia de variações não muito inspiradas sobre as canções dos Beatles. Além do mais, a participação de Ed Sheeran (no seu próprio papel) tem qualquer coisa de postiço e gratuito, mais parecendo resultar de um golpe simplista de marketing.
Ainda assim, importa sublinhar a energia contagiante do intérprete principal, Himesh Patel. Mostrando a agilidade suficiente para se manter fiel ao espírito das canções (além de Yesterday, escutamos temas de todas as fases dos Beatles, de She Loves You a Let It Be), sabe também evitar qualquer postura de banal imitação. Apesar do esquematismo dramático em que o filme se vai instalando, Patel consegue emprestar alguma densidade dramática à personagem do cantor desconhecido que se apropria das canções que não lhe pertencem, embora não desistindo de repor a verdade — ei-lo numa recente edição do show de Jimmy Kimmel, interpretando o tema que dá o título ao filme.