Ewan McGregor em boa companhia: o filme Christopher Robin reinventa o universo do ursinho Winnie the Pooh, criado pelo escritor inglês A. A. Milne |
Reinventando as personagens dos livros de A. A. Milne, o filme Christopher Robin é uma das mais belas fábulas cinematográficas dos últimos anos: não passou nas salas portuguesas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Julho), com o título 'Winnie the Pooh e o sentido da vida'.
É provável que o leitor se recorde de uma notícia surgida há cerca de um ano (nos primeiros dias de Agosto de 2018), dando conta da proibição do filme Christopher Robin na China. Porque é que uma história do lendário ursinho Winnie the Pooh seria um objecto interdito aos espectadores chineses? Pois bem, porque as autoridades entenderam que a sua eventual exibição pública iria reforçar o frequente tratamento caricatural de Xi Jinping, Presidente da República Popular da China, com o aspecto de... Winnie the Pooh!
Acontece que Christopher Robin também não teve estreia nas salas portuguesas... O seu lançamento chegou a estar marcado para Outubro do ano passado, mas nunca se consumou. Admitindo algum erro da minha memória (poderia ter estado distraído e não me ter apercebido da respectiva estreia), consultei os dados oficiais do Instituto do Cinema e do Audiovisual e o título do filme não consta, de facto, do “box office” de 2018. Há poucos dias descobri-o, acidentalmente, num canal do cabo.
Peço que não me interpretem mal: não há nenhuma equivalência, prática ou simbólica, entre o gesto da censura chinesa e a indiferença com que o filme foi tratado em contexto português. O que, entenda-se, também não nos impede de tentar compreender as determinações dessa indiferença.
Sobre o filme enquanto objecto específico de cinema, direi que Christopher Robin me parece uma das mais belas fábulas cinematográficas dos últimos anos, reinventando com delicada sensibilidade o universo cativante dos livros de A. A. Milne (1882-1956), ilustrados por E. H. Shepard (1879-1976). E não como mera homenagem a uma das obras-primas da literatura infantil de raiz europeia: a proposta narrativa é tanto mais sugestiva quanto o filme desloca o seu universo original — Christopher Robin em criança, convivendo com Pooh, Piglet, Tigger, etc. — para um futuro em que o protagonista reencontra os bonequinhos da sua infância, vivendo uma aventura que o leva a questionar os próprios fundamentos morais e profissionais da sua vida adulta.
Não estamos, entenda-se, perante um objecto marginal, quer em termos de produção, quer na dinâmica do mercado. Christopher Robin tem chancela da Disney (proprietária dos direitos de adaptação dos livros de Milne) e conta com Ewan McGregor como intérprete da personagem central, um actor muito popular desde os tempos de Trainspotting (1996) que, entre muitos outros sucessos, participou em três episódios da saga Star Wars, assumindo a figura de Obi-Wan Kenobi.
Enfim, também não se trata de procurar qualquer caução “autoral” para sublinhar as singularidades do filme. Ainda assim, vale a pena lembrar que o seu realizador, Marc Forster, está longe de ser um profissional alheio ao chamado cinema de “grande público”. Na sua filmografia encontramos títulos tão singulares como o drama Monster’s Ball (2001), que valeu um Oscar de melhor actriz a Halle Berry, a par de fenómenos de bilheteira como 007: Quantum of Solace (2008), ou WWZ: Guerra Mundial (2013), protagonizados por Daniel Craig e Brad Pitt, respectivamente.
O que está em jogo excede, aliás, o “esquecimento” a que este filme foi sujeito. A marginalização de um produto deste teor (e uso a designação “produto” porque na gíria da distribuição/exibição a palavra tende a obliterar a designação de “filme”) é um sinal sintomático do triunfo de uma outra cultura cinematográfica que já não se reconhece nas fábulas de Milne nem no filme de Forster, privilegiando uma noção de infância que parece destinada a fundir-se com o imaginário bélico de super-heróis e afins.
Em boa verdade, creio que esse processo começou com os medíocres filmes de “Harry Potter”. Através de um elaborado sistema promocional, tais filmes conseguiram impor a ideia banal segundo a qual a dimensão fantástica do cinema nasce obrigatoriamente de uma conjugação de “bruxaria” e “efeitos especiais”. Perante a violência simbólica dessa visão, a imagem de Ewan McGregor sentado num tronco de árvore ao lado de Pooh é coisa de imensa fragilidade. Aliás, quem se lembraria de discutir o sentido da vida com um ursinho de peluche? Chinesices.