sábado, junho 08, 2019

Multidões do cinema e do futebol

Richard Vuu — O ÚLTIMO IMPERADOR
Como olhamos as imagens do presente da nossa sociedade? De que modo, e porquê, as imagens do futebol são tão poderosas no nosso quotidiano? Que outras imagens falta contemplar? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Junho), com o título 'O imperador, a sua multidão e o nosso futebol'.

A história dos filmes quase sempre omite o seu nome: chama-se Richard Vuu e representou o lendário Pu Yi, aos 3 anos de idade, em O Último Imperador (1988), de Bernardo Bertolucci. Esta é uma daquelas imagens que, creio, há muito superou a condição de simples ilustração do filme a que pertence. Porquê?
Lembrei-me recentemente da imagem, não exactamente, confesso, pela comoção que perpassa pela figurinha de Pu Yi, suportando, incauto, o peso de gerir um império a partir da Cidade Proibida. Antes porque a vulnerabilidade do protagonista só adquire o seu sentido pleno através da presença de uma entidade que lhe confere uma vocação simbólica, investindo-o de uma significação política. Essa entidade é a multidão dos seus servos — conhecedor sofisticado dos valores do espaço, Bertolucci faz com que a sintamos tanto mais quanto mais a sua câmara se aproxima do rosto cristalino do pequeno Vuu.
Lembrei-me da imagem como contraponto às nossas multidões do futebol. De facto, não me basta a sua descrição, e também a sua exaltação, como espelho de uma celebração meramente desportiva. Aliás, só mesmo por voluntária cegueira existencial poderemos considerar que ainda há algo de “meramente desportivo” na nossa sociedade. O futebol, em particular, passou a ser vivido e encenado (e não há qualquer diferença entre uma coisa e outra) como um palco, de uma só vez físico e simbólico, a que somos convocados para resgatar os limites da nossa identidade.
Tendo em conta que, de norte a sul do país, as celebrações futebolísticas se cruzam muitas vezes com os lugares e os protagonistas da cena política, faz mesmo sentido dizer que a participação nos movimentos colectivos do futebol passou a ser concebida como um dado compulsivo de inscrição do indivíduo na colectividade.
É por isso, também, que me fascina a solidão radical de Pu Yi, tal como filmado por Bertolucci. O seu olhar fixo, a tensão da testa, a nobreza primordial da pose, enfim, a resistência anímica ao esquematismo teatral da multidão, tudo nos diz que aquilo que faz dele uma personagem histórica é, paradoxalmente ou não, a sua exterioridade aos desígnios colectivos da própria história.
Lembrei-me da imagem de O Último Imperador porque, de uma maneira ou de outra, as imagens das multidões adquiriram um valor fortíssimo na nossa definição enquanto colectividade. Mas será que não há outras imagens que seja útil contemplar? Por exemplo, quantas imagens vimos da escassa afluência dos cidadãos às assembleias de voto no mais recente acto eleitoral? Terá havido algum momento em que alguém, por serena profilaxia pedagógica, tenha colocado uma imagem de uma qualquer praça pública cheia de adeptos do futebol ao lado de uma imagem de uma assembleia de voto vazia?
Faz-nos falta contemplar tal contraste. E não tenho ilusões sobre o imediato mal entendido gerado por esta última pergunta. Porquê? Porque sei que qualquer interrogação do papel social do futebol tende a ser recebida por muitas pessoas como uma “condenação” automática de “todo” o futebol.
Na verdade, se falo em pedagogia é apenas no sentido “godardiano” que ela pode envolver. Através da sua admirável filmografia, incluindo esse monumento de celebração cinéfila que é História(s) do Cinema (1989-1999), Jean-Luc Godard ensina-nos que, perante duas imagens, não se trata de escolher uma “ou” outra, mas sim de olhar para uma “e” outra como expressão de um mesmo presente (neste caso, de um só país). Exemplo revelador: na sua obra, há um filme sobre uma família palestiniana cujo retrato nasce do contraponto com uma família francesa — tem data de 1976 e chama-se “Aqui e Algures” (Ici et Ailleurs).

O "et" de ICI ET AILLEURS
Fazem-nos falta imagens do que somos, e como somos, para perguntarmos se sabemos o que somos. Colocar lado a lado a abstenção política e as multidões ululantes do futebol não significa que uma coisa “explique” a outra. Acontece que aquilo que ganha evidência (e, mais do que isso, poder) de evento social define os valores e, no limite, a vida cultural de uma comunidade. Agora ou em 1908, quando Pu Yi virou as costas aos seus servos.