domingo, maio 12, 2019

"La Madonna" em Itália

Lucia (Alba Rohrwacher) na companhia da "sua" aparição (Hadas Yaron)
De Itália chega Lucia Cheia de Graça, filme que aposta em contar uma história marcada por insólitas peripécias transcendentais, com Alba Rohrwacher como intérprete principal — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Maio).

Cinefilia?... Onde encontrar esse amor clássico dos filmes?... Convenhamos que não é fácil, sobretudo quando vivemos ensurdecidos pelo ruído planetário dos filmes de super-heróis que, por regra, obedecem a uma sinopse pueril. A saber: o nosso planeta, aliás, o infinito de todas as galáxias está ameaçado de destruição, mas alguém vai chegar para nos salvar em formato IMAX... Ou como a monotonia passou a ser uma forma social de êxtase.
Daí que possamos acolher com simpatia um filme como Lucia Cheia de Graça, do italiano Gianni Zanasi (distinguido em Cannes/2018 com o prémio atribuído pela associação de exibidores europeus). Não é, de facto, todos os dias que alguém nos convoca para uma história em que uma topógrafa recebe ordens de Nossa Senhora — assim mesmo, “La Madonna”, a pioneira.
Eis a insólita aventura transcendental: no meio da sua atribulada vida familiar, Lucia começa a ficar intrigada com os planos de construção de uma obra no seu município, acabando por descobrir que alguém está a tentar ocultar uma série de ilegalidades. Até que, no meio do campo, recebe a visita de Nossa Senhora... Alheia a qualquer levitação tradicional, a santa tem uma concepção pragmática dos problemas de Lucia e sugere mesmo uma solução pouco ortodoxa para desmantelar (destruir?) o estaleiro da obra...
Dir-se-ia que há aqui um problema de crença. E não necessariamente de Lucia que, com compreensível ansiedade, vai lidando com o radicalismo da figura santa (que, além do mais, só ela vê...). É o próprio realizador que parece não acreditar na premissa dramática que colocou em marcha, nunca tomando uma decisão clara sobre o filme que pretende fazer — entenda-se: sobre a relação que quer estabelecer com o espectador.
Assim, por um lado, Lucia Cheia de Graça parece seguir com relutância os caminhos de uma parábola existencial sobre a nossa relação com o sagrado (ou a sua rejeição). Ao mesmo tempo, por outro lado, Zanasi nunca consuma tal hipótese, refugiando-se nos ziguezagues de uma comédia social que, por fim, não chega a fazer justiça à riqueza da respectiva tradição no interior da produção italiana.
Alba Rohrwacher, actriz de uma naturalidade paradoxal, ora transparente, ora enigmática, bem se esforça por resgatar a personagem de Lucia de um registo meramente anedótico ou caricatural. E não há dúvida que o seu trabalho empresta a certos momentos do filme alguma contagiante verdade emocional. Seja como for, Lucia Cheia de Graça fica sempre aquém das potencialidades dos mecanismos de ficção que coloca em marcha.