Lucia (Alba Rohrwacher) na companhia da "sua" aparição (Hadas Yaron) |
De Itália chega Lucia Cheia de Graça, filme que aposta em contar uma história marcada por insólitas peripécias transcendentais, com Alba Rohrwacher como intérprete principal — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Maio).
Cinefilia?... Onde encontrar esse amor clássico dos filmes?... Convenhamos que não é fácil, sobretudo quando vivemos ensurdecidos pelo ruído planetário dos filmes de super-heróis que, por regra, obedecem a uma sinopse pueril. A saber: o nosso planeta, aliás, o infinito de todas as galáxias está ameaçado de destruição, mas alguém vai chegar para nos salvar em formato IMAX... Ou como a monotonia passou a ser uma forma social de êxtase.
Daí que possamos acolher com simpatia um filme como Lucia Cheia de Graça, do italiano Gianni Zanasi (distinguido em Cannes/2018 com o prémio atribuído pela associação de exibidores europeus). Não é, de facto, todos os dias que alguém nos convoca para uma história em que uma topógrafa recebe ordens de Nossa Senhora — assim mesmo, “La Madonna”, a pioneira.
Eis a insólita aventura transcendental: no meio da sua atribulada vida familiar, Lucia começa a ficar intrigada com os planos de construção de uma obra no seu município, acabando por descobrir que alguém está a tentar ocultar uma série de ilegalidades. Até que, no meio do campo, recebe a visita de Nossa Senhora... Alheia a qualquer levitação tradicional, a santa tem uma concepção pragmática dos problemas de Lucia e sugere mesmo uma solução pouco ortodoxa para desmantelar (destruir?) o estaleiro da obra...
Dir-se-ia que há aqui um problema de crença. E não necessariamente de Lucia que, com compreensível ansiedade, vai lidando com o radicalismo da figura santa (que, além do mais, só ela vê...). É o próprio realizador que parece não acreditar na premissa dramática que colocou em marcha, nunca tomando uma decisão clara sobre o filme que pretende fazer — entenda-se: sobre a relação que quer estabelecer com o espectador.
Assim, por um lado, Lucia Cheia de Graça parece seguir com relutância os caminhos de uma parábola existencial sobre a nossa relação com o sagrado (ou a sua rejeição). Ao mesmo tempo, por outro lado, Zanasi nunca consuma tal hipótese, refugiando-se nos ziguezagues de uma comédia social que, por fim, não chega a fazer justiça à riqueza da respectiva tradição no interior da produção italiana.
Alba Rohrwacher, actriz de uma naturalidade paradoxal, ora transparente, ora enigmática, bem se esforça por resgatar a personagem de Lucia de um registo meramente anedótico ou caricatural. E não há dúvida que o seu trabalho empresta a certos momentos do filme alguma contagiante verdade emocional. Seja como for, Lucia Cheia de Graça fica sempre aquém das potencialidades dos mecanismos de ficção que coloca em marcha.