Consagrado no Festival de Cannes de 2018, o filme “Diamantino” merece ser descoberto. Mesmo que possamos recebê-lo com desencanto, vale a pena pensar a sua visão de um país chamado Portugal — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Abril).
Que dizer sobre o filme Diamantino, de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, que chegou às salas portuguesas, quase um ano depois de ter arrebatado, em Cannes, o prémio principal da Semana da Crítica?
Talvez possa ser pedagógico referir que esse prémio serve também de sintoma das clivagens que marcam o universo da crítica de cinema — de facto, não posso deixar de dar conta do meu desencanto face a Diamantino. Dito de outro modo: não há nada que justifique falar de uma entidade unificada, muito menos unívoca, a que daríamos o nome de “crítica”. Interessante é, justamente, a coexistência das diferenças que a intervenção crítica pode envolver.
Entenda-se: o reconhecimento de tais diferenças não arrasta qualquer dúvida sobre o enorme valor simbólico daquele prémio, não apenas para o filme (e toda a sua posterior difusão, em particular no circuito internacional dos festivais), mas para o cinema português em geral.
Trata-se, aliás, de um tema antigo que convém não toldar com a estupidez do preconceito. Em termos meramente pessoais (e não sou o único, como é evidente), sempre sublinhei a importância do impacto internacional da obra de Manoel de Oliveira, sobretudo a partir de Amor de Perdição (1979), recordando-me das vozes que proclamavam que tal impacto era um detalhe sem importância apenas celebrado pela “crítica”. É bem verdade que, depois da morte de Oliveira, tais vozes se exilaram, numa patética demonstração de pequenez ideológica. Mas o tema persiste: com Gabriel Abrantes, ou seja com que cineasta for, exemplos de consagração como o citado são elementos preciosos para qualquer estratégia de política cultural. Podemos, talvez, perguntar se a classe política (de todos os quadrantes) tem sabido reconhecer e exponenciar tais elementos... mas isso é outra questão.
Que me faz, então, resistir a Diamantino? Algo que está para além da sua condição de objecto de cinema e que, a meu ver, tem vindo a contaminar todos os quadrantes da cultura dominante. Dar-lhe-ei um nome que o leitor talvez encare como irónico, mas que apresento como puro elemento descritivo. A saber: o triunfo da irrisão contra qualquer forma de pensamento.
Como é sabido, o filme encena as atribulações de um futebolista português, Diamantino, que falha um lance decisivo numa final de um campeonato do mundo, entrando numa crise que o leva a interessar-se pela possibilidade de encontrar a sua redenção através do acolhimento de um refugiado...
Em termos estritamente narrativos (se é possível separar a construção narrativa das referências, temas ou símbolos que se convocam), o filme parece-me francamente esquemático. A opção dominante consiste em criar “acontecimentos” mais ou menos pitorescos (como os cães que Diamantino visualiza durante os jogos), mais próximos de algumas matrizes publicitárias — valorizando o efémero de detalhes mais ou menos “surreais” — do que da paciente construção de espaço/tempo que um filme requer.
Ainda assim, essa minha avaliação está longe de ser a motivação essencial destas linhas. Gostaria, aliás, de pensar que o valor polémico do filme vai atrair muitos espectadores que, naturalmente, podem não se reconhecer nessa mesma avaliação. Vejo no filme a consagração dessa deriva para a irrisão, e pela irrisão, que está a contaminar todo o nosso universo cultural.
Quando escrevo o “nosso” universo cultural, estou a pensar no contexto português? Sim, sem dúvida, mas também muito para além dele. A banalização das relações que o novo “social” impôs é um fenómeno que transcende fronteiras, sobretudo as tradicionais fronteiras culturais. Há mesmo, em rede, uma pulsão dominante que leva a celebrar o irrisório como linguagem comum que todos somos convidados a partilhar — nem que seja para escrever um insulto mais ou menos obsceno contra um qualquer “outro” encarado como descartável destino virtual do gesto pueril de quem escreve.
Diamantino, o filme, não é, por certo, uma expressão desse tipo de miséria “comunicacional”. Acredito até que se trata de uma narrativa enraizada num misto de amor e compaixão pelas grandezas e misérias do nosso país. Acontece que o esquematismo e, a partir de certa altura, a redundância da sua visão caricatural acaba por reflectir um drama interior a muito cinema que se faz em Portugal. A saber: a extrema dificuldade em construir ficções (realistas ou não, não é essa a questão) que consigam apropriar-se de sinais, personagens ou situações que possam gerar o reconhecimento identitário dos próprios espectadores.
Não tenho dúvidas que esse trabalho de convocação dos olhares e sensibilidades dos espectadores não depende apenas do talento ou boa vontade dos criadores cinematográficos. Dito de outro modo: a existência de um pano de fundo industrial com um mínimo de solidez (financeira) é também um importante elemento cultural. Como sugestivo contraponto, observe-se o caso recente do novo filme do americano Jordan Peele, sugestivamente intitulado Nós. Podemos gostar mais ou gostar menos do filme (eu sou fã, confesso), mas nada disso nos impede de reconhecer na sua dinâmica de tradicional conto de terror as marcas mais ou menos ambíguas de uma conjuntura (cultural, política, ideológica) que nos remete, ponto por ponto, para a América de Donald Trump.
Vivemos um tempo em que os discursos mais miseráveis, ou melhor, de maior miséria criativa conseguem adquirir tribunas “sociais” de eco imediato e avassalador. Observe-se, por exemplo, o modo como a provocação fútil, a ignorância estética e o menosprezo por qualquer relação humana são todos os dias consagrados como elementos definidores da “juventude”. Há mesmo casos em que o falar mal (no sentido de não saber construir uma simples frase em língua portuguesa) é celebrado como sinal triunfante do ser “jovem”.
Nesta encruzilhada, o filme Diamantino não passa de um acontecimento singular, cuja singularidade, mesmo nas suas limitações cinematográficas, não pode ser confundida com as tragédias culturais que nos assombram. Em defesa do filme, acrescentarei que vejo também nele um pretexto para pensarmos a cultura dominante na nossa sociedade. Ou seja: o futebol.