Com a morte de Marlen Khutsiev despareceu uma figura fundamental na história do cinema soviético e russo: a discussão do(s) realismo(s) está no centro do seu universo criativo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Março), com o título 'Realismo social contra realismo socialista'.
Ao princípio da tarde do dia 19 de Março, surgiu a notícia da morte do cineasta Marlen Khutsiev, contava 93 anos. Tendo assinado a sua primeira longa-metragem, Spring on Zarechnaya Ulitsa, em 1956, no período de “degelo” na URSS que se seguiu às perseguições e censura do aparelho estalinista, Khutsiev viria a impor-se como um nome de fundamental importância na história do cinema soviético e russo.
Escrevo estas notas um dia mais tarde e verifico que o IMDb ainda não deu a notícia. É uma lacuna sintomática da sua filosofia informativa, ancorada numa postura de “bíblia” da cinefilia. Há longas semanas que o IMDb multiplica notícias, curiosidades ou entrevistas sobre Capitão Marvel e os “blockbusters” americanos que se anunciam para a temporada de Verão... O certo é que o desaparecimento de um criador tão importante como Khutsiev não é assunto prioritário.
Não se leia nesta observação qualquer suspeita em relação ao cinema dos EUA. Sou mesmo dos que continuam a pensar que é de Hollywood e das suas margens que continuam a surgir algumas das obras mais fascinantes da produção contemporânea. E também não se trata de recusar ao IMDb o reconhecimento da acumulação de muita informação útil. Acontece que, para além desta ausência do obituário de Khutsiev, por ele perpassa uma indiferença estrutural que, muitas vezes, nem sequer se mostra atenta à pluralidade da produção dos EUA.
A importância de Khutsiev é tanto maior quanto envolve a metódica discussão do que seja, ou possa ser, um realismo social, em contraste, precisamente, com a apertada formatação ideológica do sistema estético e narrativo que vigorou na URSS e entrou para a história com a designação de realismo socialista. Exemplo modelar do seu olhar poderá ser Chuva de Julho (1967), retrato íntimo de uma mulher que, nos seus trinta anos, reavalia a lógica (ou falta de lógica) de toda a sua existência, com uma versatilidade dramática e uma compaixão humana de fazer inveja a algumas visões “militantes” da nossa actualidade.
Aliás, as ramificações de tal sistema podem encontrar-se na produção artística de vários países do antigo Bloco de Leste. No cinema recente, tivemos uma notável abordagem desse estado de coisas na República Democrática Alemã no filme Nunca Deixes de Olhar, de Florian Henckel von Donnersmarck, um dos nomeados para o Oscar de melhor filme estrangeiro.
O que está em causa, entenda-se, é sempre, em última instância, o (des)conhecimento de criadores como Khutsiev. E se importa não demonizar a produção “made in USA”, é preciso também não contribuir para o esquematismo oposto que consiste em consagrar de forma beata tudo o que, vindo de contextos mais ou menos distantes, exibe ou pode exibir um emblema de “independente” ou “alternativo”. O que está em causa é a intransigente defesa de uma pluralidade cultural que, decididamente, mesmo com as suas virtudes informativas, o IMDb não encarna.
_____NOTA: Em Lisboa, o cinema Monumental vai homenagear Marlen Khutsiev (1925-2019) com a exibição de Chuva de Julho em cópia digital restaurada — domingo, dia 24 (21h30).