sexta-feira, fevereiro 01, 2019

Partilhando memórias do Holocausto

O filme Debaixo do Céu, de Nicholas Oulman, ensina-nos a olhar para as imagens do passado, questionando os próprios métodos de fazer história através do audiovisual — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Janeiro).

Com a estreia de Debaixo do Céu, o belo filme de Nicholas Oulman organizado a partir de memórias judaicas do tempo de ascensão dos nazis ao poder, enriquece-se o património documental sobre a Segunda Guerra Mundial. Noite e Nevoeiro (1956), de Alain Resnais, e Shoah (1985), de Claude Lanzmann, são algumas das referências incontornáveis no interior da mesma paciente e obstinada tarefa: a de não deixar morrer as memórias do Holocausto e, nessa medida, preservar os testemunhos dos sobreviventes.
O trabalho de Oulman é tanto mais admirável quanto se afasta, ponto por ponto, das mais fáceis (?) soluções narrativas. Dito de outro modo: estamos longe do preguiçoso dispositivo televisivo que encara as imagens como matéria “ilustrativa” à qual se sobrepõe uma voz off reduzida à missão de “evocar” factos à maneira de uma entrada de enciclopédia histórica.
Não está em causa que, por vezes, tal dispositivo tenha gerado objectos capazes de apresentar, de modo organizado e esclarecedor, alguns factos fundamentais da Solução Final montada pelo aparelho repressivo de Adolf Hitler. Acontece que filmes como Debaixo do Céu [trailer] sabem valorizar os recursos específicos da linguagem cinematográfica, convocando o espectador para uma riquíssima experiência cognitiva e sensorial.


Assim, os testemunhos de judeus que abandonaram a Alemanha a partir de 1932/33, rumando a diversos países europeus e americanos, incluindo Portugal, ocupam por inteiro a banda sonora — e escusado será sublinhar o modo como tal opção minimalista intensifica a contundência informativa das vozes e também a complexidade das emoções que transportam. O impacto de tais vozes remete-nos, afinal, para um tempo em que as pessoas escutadas eram crianças ou adolescentes.
Em simultâneo, vamos descobrindo espantosas imagens de arquivo, das menos vistas (ou mesmo não habitualmente utilizadas) em produções deste teor. Da visão aérea das ruínas de Berlim no final da guerra aos refugiados a conviver em lugares emblemáticos da cidade de Lisboa, somos confrontados com memórias que transcendem, e muito, a lógica “descritiva” das matrizes narrativas dominantes nos noticiários televisivos.
Aliás, quase todas as imagens de Debaixo do Céu são tratadas através uma metódica “lentidão”. Não é um efeito banal de câmara lenta, antes a criação de novas durações capazes de solicitar o nosso olhar para outros modos, mais atentos e exigentes, de contemplar os materiais de arquivo.
Nesta perspectiva, pode dizer-se que as imagens de Debaixo do Céu reavivam uma velha lição de Jean-Luc Godard exposta, em 1980, nesse filme prodigioso que é Salve-se quem Puder — título original: Sauve qui Peut (La Vie). Godard tratou as imagens do quotidiano alterando as suas velocidades de percepção [video], curiosamente integrando técnicas de manipulação que começavam a ser correntes no espaço televisivo, em particular no tratamento dos lances do futebol (no Reino Unido, o filme foi mesmo lançado com o título Slow Motion).


Eis uma outra lição simples e radical, isto é, indo à raiz das coisas: conhecer o passado através de imagens e sons não é acumular informação “visual”, acrescentando-lhe uma caução “sonora”. Debaixo do Céu lembra-nos que os nossos modos de relação com o passado, cruzando ética e estética, são também figuras do entendimento do nosso presente. Ver é seleccionar e reorganizar. Partilhar, enfim.