A estreia de Roma, de Alfonso Cuarón, veio relançar muitas questões urgentes do mercado cinematográfico; em Portugal, talvez ganhássemos em tentar pensar tais questões para além da exaltação tecnológica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Dezembro), com o título 'Pensar o cinema para além da tecnocracia'.
Como as pessoas interessadas em cinema saberão, o filme Roma, do mexicano Alfonso Cuarón, teve a sua estreia nas salas portuguesas na quinta-feira, 13 [Dezembro], estando também disponível na Netflix desde o dia 14. É, a meu ver, um dos grandes acontecimentos do ano cinematográfico.
Seja como for, e para além de qualquer juízo de valor, creio que vale a pena sublinhar as condições em que Roma chegou ao mercado português. Até porque convém não esquecer que tais condições são apenas um sintoma parcelar de um drama que está a contaminar toda a paisagem global do cinema. A saber: que relações existem entre as plataformas de “streaming” e o circuito clássico das salas? Mais concretamente: que relações podem existir entre tais entidades?
Alfonso Cuarón |
Entre nós, não deixa de ser interessante referir que, independentemente do caso do filme de Cuarón, um dos discursos dominantes do mercado — visando os consumidores e a própria comunicação social — envolve a consagração da crescente sofisticação técnica de muitas salas escuras (Portugal foi, aliás, um dos países a consumar com mais rapidez a passagem para a projecção digital). Ora, ninguém põe em causa a importância das condições de projecção dos filmes — ao longo das décadas, alguma crítica de cinema tem tido (e continua a ter) um papel activo nesse processo. Resta saber se a ilusão tecnocrática de que estamos na “linha da frente” do digital resolve os problemas endémicos do mercado.
Isto porque importa não fechar os olhos a uma crise que nunca será superada pela mera ostentação tecnológica. Por exemplo: de acordo com os dados oficiais do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), entre Janeiro e Outubro deste ano foram ao cinema 11,8 milhões de espectadores, o que corresponde a uma quebra de 8,3% em relação ao mesmo período de 2017.
Steven Soderbergh |
Estamos, enfim, perante um típico fenómeno dos nossos dias: o endeusamento da tecnologia. Nos EUA, há mesmo quem considere que as entidades com mais poder industrial e comercial estão a menosprezar (e, no limite, a destruir) a pluralidade artística e financeira do cinema. Em 2013, numa conferência no Festival de São Francisco, Steven Soderbergh sustentou uma análise cujos ecos em Hollywood e nos circuitos independentes não se dissiparam. Assim, o cineasta de Ocean’s 11 fez questão em descrever a sua perturbante relação pessoal com muitos executivos dos grandes estúdios: dizia ele que não podia deixar de sentir que eles não gostam de cinema e, no limite, nem sequer vêem os filmes.
Que fazer? Sugiro que comecemos por reconhecer que, salvo melhor opinião, Soderbergh não é um porta-voz da crítica de cinema, seja ela qual for. Além do mais, não me parece fácil rotulá-lo de artista indiferente à economia do cinema e ao valor comercial dos filmes.