sábado, dezembro 01, 2018

João Botelho e o progresso das formas [2/2]

OS MAIAS
De Conversa Acabada (1981) ao mais recente Peregrinação (2017), os filmes de João Botelho surgem em retrospectiva no Lisbon and Sintra Film Festival (LEFFEST): aos 69 anos de idade, o cineasta confessa que sente a falta do gosto colectivo de descobrir o cinema — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (20 Novembro).

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Pensando nesta retrospectiva no LEFFEST, que filme ou filmes da tua obra conseguiram gerar essa comunhão [cinematográfica]?
Conversa Acabada foi um fenómeno de divisão, metade a gostar, metade a não gostar... Creio que Um Adeus Português ou Tempos Difíceis geraram essa comunhão. Houve uma altura em que aquilo que eu fazia seria, talvez, muito arriscado, acabando por obter um impacto internacional mais forte do que internamente. Quando adoptei outra atitude, com Filme do Desassossego ou Os Maias, procurando lutar contra o esquecimento, enfim, fazendo serviço público, os filmes começaram a funcionar melhor em Portugal do que lá fora... Mas o mais difícil é conseguir que os adultos voltem às salas — Os Maias terá sido o filme que mais conseguiu isso.

Quer isso dizer que, apesar de tudo, ainda há alguma disponibilidade que decorre do interesse pela nossa herança literária?
Sim, porque as pessoas podem ter lido ou apenas julgarem que leram Os Maias, mas persiste na sua memória como um dos grandes romances do século XIX português. Mas não é necessariamente por ter a ver com literatura. Poderia ser, por hipótese, um filme sobre o Amadeo de Souza Cardoso ou as fotografias do Carlos Relvas — há referências em relação às quais os adultos ainda têm algum interesse; os miúdos, não sei... Mas não é tanto uma questão de cultura, é sobretudo uma questão de educação: o sistema educativo português não é suficientemente atractivo e exigente.

Deveria haver um contacto das crianças com o cinema promovido, antes do mais, pela escola?
Sem dúvida. Há um menosprezo pela história do cinema que importa contrariar. Os pensadores da história do cinema, como o Sr. Godard, continuam a ser minoritários.

As crianças e os jovens estão a ser mais educados pelo cinema ou pela telenovela?
Nem por uma coisa nem por outra — estão a ser educados, não exactamente pelas “fake news”, mas pelo carácter mundano das coisas, pela sua facilidade. Hoje, já ninguém fala com os outros. O Google resolve uma dúvida em 30 segundos... mas 90% daquilo é lixo e consumo. Os “fait divers”, as notícias ridículas e pequeninas, a vida íntima, tudo isso passou a ser mais importante que as obras — as pessoas lêem pequenos resumos e acham que sabem tudo. Ao mesmo tempo, quero ser optimista e não posso deixar de lembrar que há uma minoria que também é forte, mas são casos individuais, não há ligação entre eles, não há diálogo.

João Botelho
[FOTO: Miguel A. Lopes]
As coisas eram diferentes quando começaste a fazer cinema?
Existia o colectivo. Antes do cinema, lembro-me que, em Coimbra, havia um tipo que sabia de jazz e chamava-nos para escutarmos o último disco do Miles Davis em casa dele... Na casa de outro, líamos em voz alta o Quarteto de Alexandria. Havia formas colectivas de aprendizagem.

E deixou de haver?
Quando apareceu, a televisão matou um pouco do cinema. Mesmo assim, era um acontecimento colectivo: a família via e discutia. Depois, cada um passou a ter uma televisão no seu quarto. Agora, já nem tem televisão — há computadores e iPhones, é um individualismo virtual. Não há toque, não há pele, não há discussão. Tudo isso me inquieta, porque o reforço do individual reforça a manipulação dos indivíduos. Assistimos a uma vingança dos ignorantes sobre o saber, contra a surpresa. Muitas pessoas não querem ir ao cinema para serem inquietadas: querem ser confortadas e confirmar o que já sabem. No limite, as pessoas querem saber da vida privada dos autores, mas não querem saber das obras — ora, eu posso ter uma vida privada estapafúrdia, mas as obras são sérias.

Nesse aspecto, terás consciência de que muitas pessoas, eventualmente espectadores de cinema, te reconhecem mais como homem da noite e adepto do Benfica...
Cada vez menos adepto do Benfica — aquilo está a correr muito mal, gosto mais de futebol do que da palhaçada à volta do futebol. Mas homem da noite, sim, é verdade: se calhar, sou o último dos homens que, com esta idade, ainda dança, salta e diverte-se.

Mas o que é a noite? Uma cultura? Uma utopia?
É uma ideia da dança... É o Nietzsche [riso]: “Só acredito num Deus que saiba dançar”. É a tal ideia de comunhão — nessa noite, ainda há sentido colectivo. E a electrónica não é uma dança de engate, nem sequer de par, é realmente uma dança colectiva em qua cada um dança como quer.

O certo é que há um cliché que associa a noite apenas ao consumo do álcool.
Sim, é verdade, mas eu bebo pouco, não tenho ressacas. Sempre fui noctívago e isso, aliás, tem também a ver com a educação dos filhos. Como tive filhos com diferenças de cerca de cinco anos, só encontrava o silêncio às duas da manhã — o trabalho passou a ser à noite, sempre. Para mim, o pensamento tem de ser no silêncio.