sábado, novembro 24, 2018

João Botelho e o progresso das formas [1/2]

[FOTO: Miguel A. Lopes]
De Conversa Acabada (1981) ao mais recente Peregrinação (2017), os filmes de João Botelho surgem em retrospectiva no Lisbon and Sintra Film Festival (LEFFEST): aos 69 anos de idade, o cineasta confessa que sente a falta do gosto colectivo de descobrir o cinema — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (20 Novembro).

Para João Botelho, os mestres que o ensinaram a respeitar o cinema merecem tratamento especial. Assim, não se refere a Manoel de Oliveira, Jean-Marie Straub ou Jean-Luc Godard, mas ao “Sr. Oliveira”, o “Sr. Straub” e o “Sr. Godard”. Ao mesmo tempo, quando o LEFFEST apresenta uma retrospectiva da sua obra, ele é o primeiro a ter consciência de que, muitas vezes, é identificado não como criador de filmes, mas homem da noite e adepto do Benfica — para ele, trata-se, afinal, de preservar o silêncio em que o pensamento ainda é possível.

Que sentimentos experimentas perante a retrospectiva dos teus filmes no LEFFEST?
É uma coisa muito estranha. Foi tudo muito rápido, não tinha dado conta de ter feito tantos filmes. Há pouco tempo, em Madrid, revi Conversa Acabada que, afinal, foi rodado há 38 anos... Não me pareceu mal. Mas é esquisito porque, quando revejo um filme que fiz, aquilo já não me pertence — pertence às pessoas que o vêem, mesmo se, de alguma maneira, eu estou lá metido. As retrospectivas têm sempre algo de doloroso, parece que é o fim de uma coisa... Ora, eu quero continuar.

Será que há nos filmes uma espécie de auto-biografia?
Encontro, sobretudo, uma certa coerência — aquilo que fiz corresponde mais a uma ideia de cinema do que a uma preocupação de contar esta ou aquela história. Há um modo de filmar, talvez se possa mesmo identificar um estilo, que está presente desde o início.

Um modo primitivo de filmar?
É algo que aprendi com o Sr. Oliveira: nunca esquecer a tradição. Não se trata de copiar os filmes dos outros, mas sim preservar uma memória, não esquecer que o cinema tem uma história. Agora, acontece-me mesmo encontrar em alguns filmes mudos sinais mais contemporâneos do que nos filmes actuais. O Sr. Straub também me ensinou a não dizer “moderno”, aplicando antes essa mesma palavra: “tradição”.

Serão, talvez, os pais do cinema, a começar por Griffith...
Sim, também Griffith, mas não só. A questão é que o modo de filmar é mais importante que as histórias que se contam. Um dos defeitos que, por vezes, encontro nos meus filmes vem daí: é muito visível o modo de filmar, as pessoas podem sentir-se um bocadinho perdidas. Pode haver todo um pensamento de enquadramento, luz, sombras... que impede a fluidez: é uma atitude com virtudes e defeitos que não abdica de dizer que o cinema tem uma tradição, podia ter sido uma arte, mas foi o negócio que prevaleceu.

Jean-Luc Godard
Que negócio é esse?
Hoje em dia, as salas de cinema são ocupadas a 90% por miúdos que vão ver desenhos animados com os pais e jovens adolescentes que vão ver super-heróis — não é uma questão portuguesa, acontece assim no mundo inteiro. Há uma vitória do entretenimento sobre o pensamento do modo de filmar. Quando um filme tem 3 mil planos e outros tantos efeitos sonoros, alguém dá atenção a alguma coisa? Não, ninguém dá atenção, ninguém vê. O que triunfa é uma certa euforia que, reconheço, também gera coisas engraçadas e divertidas... mas a ideia do pensamento foi arredada de muito cinema que se faz hoje. Daí que encontremos em algumas séries de televisão americanas melhores actores, melhores autores, no fundo, melhor cinema.

Seja como for, se pensarmos em Griffith, Renoir ou Bergman, o certo é que podemos encontrá-los na Net e, como se diz agora, vê-los em streaming. Que resta, então? Já não é a mesma coisa?
A obra está lá... mas falta a celebração colectiva, passou a ser um trabalho individual: “eu” posso ver aquilo sozinho! Despareceu essa ideia de que se podia ir a uma sala escura, todos se calavam e era possível experimentar uma emoção colectiva. Triunfou o individualismo e, como é óbvio, não é uma questão exclusiva do cinema: o “eu” sobrepôs-se ao colectivo. Por vezes, isso torna-se inquietante porque envolve a perda da aprendizem colectiva e a possibilidade de o “eu” se dissolver numa certa comunhão. Como o Sr. Godard já nos avisou, “eles” não procuram a evolução das formas, apenas querem o impacto mediático e o sucesso imediato — deixou de haver uma luta pelas ideias e pelo progresso das formas.