O lançamento de um filme póstumo de Orson Welles na Netflix envolve um especial dramatismo: afinal, que é feito da cinefilia? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Novembro).
Se somos cinéfilos, a amargura dos tempos não se vence com nostalgias. Observe-se o fenómeno Netflix. Há um ano ou dois, quando este serviço de streaming começou a consolidar a sua base de consumidores, surgiu um vício “social” (com ou sem rede) que, aliás, persiste: ser espectador seria poder desenrolar uma longa lista de séries televisivas descobertas, e avidamente consumidas, na Netflix...
Mas não é verdade que a Netflix, precisamente, passou a ser um dos lugares de eleição para estarmos a par de algumas das mais notáveis proezas narrativas do actual espaço televisivo? Claro que sim, não é isso que está em causa: por razões que vão da produção à difusão, a Netflix tornou-se mesmo um dos fenómenos da linha da frente do audiovisual contemporâneo.
O que importa reconhecer é a fragilidade deste novo modelo de “telefilia” instantânea. Há nele um espírito consumista, gerado pela abundância da oferta, que já não possui qualquer desejo de procura. Dir-se-ia que a relação com os pequenos ecrãs (do computador ao telemóvel) tende a transformar muitos espectadores em acumuladores de produtos, não necessariamente descobridores de narrativas.
O caso de O Outro Lado do Vento é sintomático. Que temos à nossa frente? Nada mais nada menos que um prodigioso filme póstumo de Orson Welles (1915- 1985), rodado nos primeiros anos da década de 70 e, depois de muitas atribulações, finalmente concluído e estreado pela... Netflix!
As comparações de extremado entusiasmo não serão exageradas. Mesmo as mais esquemáticas: estamos, afinal, perante uma revelação equivalente à que seria a descoberta de um quadro de Rembrandt ou uma partitura de Mozart... Daí a pergunta: será que o nosso agitado espaço “social” tem gerado, já não digo algum entusiasmo pelo renascido Welles, mas pelo menos um leque de informações idêntico ao que tem acompanhado tantos produtos da Netflix, dos mais brilhantes aos mais medíocres?
Há outra maneira de dizer isto: nos nossos dias de relações virtuais, muitas formas de consumo audiovisual são desprovidas de memória, dispensando qualquer relação (nem que seja de mera curiosidade) com a história do cinema — como se essa história de mais de um século não existisse. Enfim, não será por acaso que a narrativa dramática de O Outro Lado do Vento, centrada num velho cineasta interpretado pelo maravilhoso John Huston (1906-1987), formula a possibilidade de o cinema morrer.