sexta-feira, novembro 23, 2018

Quando Walt Disney dava voz a Mickey

A definição da personagem de Mickey está intimamente ligada a Walt Disney — intimamente porque corporalmente: o rato mais célebre do mundo nasceu com a voz do próprio Disney (e assim se manteve até à morte do seu criador, em 1966) — este texto foi publicado num dossier dedicado aos 90 anos de Mickey, no Diário de Notícias (18 Novembro), com o título 'A voz do dono'.

Walt Disney conhecia bem o valor — artístico, simbólico e financeiro — do seu Mickey. Numa célebre frase, regularmente citada, proclamou mesmo um princípio de identidade: “Só espero que não percamos de vista uma coisa: é que tudo começou com um rato.”
Disney envolveu-se mesmo com a personagem através de uma importante “duplicação”: foi ele que deu voz a Mickey, desde 1928 até à sua morte, em 1966, contava 65 anos. Podemos, aliás, conhecer alguns momentos das sessões de gravação de Disney através da colecção de DVD “Walt Disney Treasures”, lançada em 2001, no âmbito das comemorações do centenário do seu nascimento. Aí encontramos uma série de fragmentos de estúdio, com Disney na companhia de Billy Bletcher (1894-1979), lendário actor revelado ainda no período mudo que deu voz a muitas figuras dos desenhos animados, incluindo o malvado “Pete”, inimigo de Mickey.
Em Bletcher, de imediato reconhecemos um genuíno intérprete enraizado da tradição burlesca: as nuances da sua voz surgem sempre ligadas a bizarras variações da expressão facial, muitas vezes acompanhadas de gestos exuberantes e sugestivos. A seu lado, o dono dos estúdios parece provir de outro mundo. Na sobriedade do fato e gravata, a figura de Disney confunde-se por inteiro com a sua pose enquanto apresentador e divulgador dos seus filmes — no bolso esquerdo do casaco, vemos mesmo aquilo que deverá ser uma folha dobrada, porventura contendo apontamentos sobre alguma produção em curso...
Mas é a voz que mais surpreende. Em primeiro lugar, porque conhecemos a voz “oficial” de Disney através de muitos outros documentos, em particular entrevistas para televisão: há nela um misto de seriedade e distanciamento que nos leva a escutar com especial atenção e disponibilidade. Depois, porque agora detectamos um tom de falsete, de calculada elaboração, em que se cruzam duas componentes igualmente expressivas: uma carinhosa conotação infantil e uma assumida teatralidade.


São sinais que contrariam a descrição corrente do espaço da infância, não apenas no universo Disney, mas genericamente no espaço social (ontem como hoje). Dito de outro modo: escutamos Mickey, aliás Disney, e verificamos que a pontuação infantil não se confunde com qualquer forma de espontaneidade, existindo antes como uma encenação de complexo artifício.
Seja como for, por mais teatralizada que seja a sua emissão, a voz conserva sempre um resto de alguma verdade individual, pessoal e intransmissível como os passaportes. Porquê? Porque não é possível apagar a sua origem. A saber: um corpo — uma voz é sempre a voz de um corpo.
A idade digital em que vivemos baralhou esta nossa certeza, já que, como bem sabemos, passou a ser possível fabricar vozes por meios informáticos. Mas a criatividade de Disney enraíza-se ainda num tempo histórico em que o cinema preserva a memória muito próxima da (sua) passagem do mudo para o sonoro: criar uma voz para Mickey era, por paradoxal ironia, uma maneira de superar a “insuficiência” expressiva da imagem.
No dizer de Roland Barthes (1915-1980), a voz distingue-se por um “grão” — para uma antologia de entrevistas, dadas sobretudo a propósito dos seus livros, Barthes escolheu mesmo o título O Grão da Voz (primeira edição portuguesa: Edições 70, 1982). A escolha de uma palavra proveniente do mundo da fotografia — o “grão” fotográfico como algo que define o jogo de precisão e artifício da própria imagem — é duplamente sugestiva: sinaliza a indestrutível relação dos sons da fala com a irredutibilidade de algum corpo, ao mesmo tempo que nos permite perceber que a percepção da imagem desse corpo é, em parte significativa, uma relação pontuada, porventura estruturada, pela escuta desses mesmos sons.
Tudo se passa como se, para Walt Disney, Mickey tivesse existido como derradeira mensagem da infância, da impossibilidade do seu regresso. Quando o observamos ao lado de Bletcher, não sentimos que o adulto queira fingir-se criança. Na contenção dos seus gestos, sublinhada pela assumida “falsidade” da voz, Disney protagoniza uma mensagem comovente, afinal estranha ao discurso oficial do seu império: a infância não é um paraíso imobilizado no tempo; quando procuramos a pureza da sua abstracção, atribuindo-lhe uma voz, isso quer dizer que já a perdemos.