Keir Dullea 2001: ODISSEIA NO ESPAÇO (1968) |
A difusão das imagens cinematográficas vive tempos atribulados: como encontrar equilíbrios entre as salas escuras e as plataformas de streaming? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Novembro).
Este é o ano em que se comemora meio século de um dos clássicos absolutos do grande ecrã: 2001: Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick. E é também o ano em que a questão da difusão cinematográfica através de pequenos ecrãs — incluindo o computador e o telemóvel — adquiriu contornos de inevitabilidade técnica e financeira, numa palavra, cultural.
Sabemos, há mais de uma década, que a economia global do cinema foi mudando de forma radical, a ponto de o mapa das suas fontes de rendimento envolver uma verdade muito básica: para a esmagadora maioria dos títulos, mais de metade das receitas acontece, não através das salas, mas... depois das salas.
Ora, essa evidência estrutural — que determina todos os vectores industriais e comerciais, da produção à difusão — também se transfigurou. Em vez de ser encarada como motor de uma dialéctica em que tudo coexiste (entenda-se: todos os circuitos de distribuição e exibição), em muitos casos passou a ser vivida como uma guerra de mútuas exclusões. Nos exemplos mais drásticos, salas escuras e plataformas de streaming vivem de costas voltadas, com alguns dos agentes envolvidos a encarar o “outro” apenas como factor de bloqueio. Consequência prática: alguns dos títulos mais importantes do presente não passam nas salas.
Alfred Hitchcock |
O problema está longe de ser simples — e escusado será sublinhar que estas linhas não passam de uma muito esquemática inventariação de dados. E está longe de ser um problema meramente moral. Desde logo, porque não é possível pensar do mesmo modo a vida comercial de um “blockbuster” de super-heróis e, por exemplo, o exercício político que é Fahrenheit 11/9, o novo filme de Michael Moore centrado em Donald Trump. Ou, se for caso disso, o lançamento de uma cópia restaurada de um clássico de Alfred Hitchcock ou Ingmar Bergman. Além do mais, é óbvio (ou talvez não seja...) que a reflexão sobre estas questões não pode ser idêntica para os EUA e para um pequeno e vulnerável mercado periférico como o português.
Importaria, talvez, valorizar um factor que, estranhamente, tende a ser instrumentalizado. A saber: o conhecimento — e reconhecimento — do próprio público. Por respeito das singularidades dos espectadores (e do seu poder de compra), importa pensar o público não como uma massa amorfa de consumidores, mas sim um colectivo de muitos contrastes, grupos e nichos.
Se caminharmos para uma nova cultura audiovisual em que os circuitos virtuais sejam tratados como um fim em si mesmo, não demorará muito tempo a desaparecer todo o lastro cinéfilo que envolve memórias e mitologias, numa palavra, história.
Podemos até alimentar uma utopia tecnocrática e formar espectadores que, no limite, sejam levados a acreditar que a grandiosidade física de 2001: Odisseia no Espaço foi fabricada para “encaixar” no seu telemóvel, ou mesmo no tímido rectângulo do seu computador pessoal... Mas quando surgir uma geração que já não conheça — nem reconheça — qualquer ligação dos filmes aos grandes ecrãs das salas escuras, o cinema definhará, desaparecendo como curiosidade académica de museu.