sexta-feira, agosto 03, 2018

Antonioni, cinema e urbanismo

DESERTO VERMELHO (1964)
Como vemos e pensamos as nossas cidades? Eis uma evidência muito esquecida: o cinema também nos pode ajudar nessa reflexão: Antonioni, por exemplo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Julho), com o título 'O urbanismo do nosso descontentamento'.

1. Sempre que observo os protagonistas do nosso pensamento social e político a agitarem-se com os dramas do nosso urbanismo, em particular nas grandes cidades, não posso deixar de me perguntar como é que eles são enquanto espectadores de cinema. Não é uma questão de autoridade, entenda-se, muito menos uma qualquer exigência de enciclopedismo (não tenho aquela autoridade e, em matérias enciclopédicas, reconheço-me francamente inapto). Acontece que muitos dos dramas actuais da vida urbana estão inscritos, de forma premonitória, por vezes com perturbante acutilância, em filmes que foram produzidos há 50 anos (ou mais). Regressar a tais filmes talvez nos ajude a alargar os modos da nossa reflexão.

2. Para nos ficarmos por um exemplo, emblemático entre todos, importa citar a esplendorosa herança da filmografia do italiano Michelangelo Antonioni (1912-2007). Será preciso lembrar que o seu título mais conhecido, Blow-up (1966), através de uma estrutura insólita de filme policial, se apresenta como uma crónica desencantada sobre as novas formas de solidão na grande metrópole londrina? Isto sem esquecer, claro, a trilogia a preto e branco com que Antonioni abriu a década de 60 — A Aventura (1960), A Noite (1961) e O Eclipse (1962) —, admirável colecção de histórias em que se avalia a possibilidade de as relações homem/mulher superarem a crise dos seus valores clássicos. Nesta perspectiva, Deserto Vermelho (1964), ainda e sempre com Monica Vitti, actriz fetiche de Antonioni, continua a ser uma referência modelar. Nos seus cenários assombrados, mas sempre realistas (em termos urbanos, justamente), descobrimos os sinais de uma verdade que quase nunca queremos enfrentar, nem mesmo no plano estritamente político: muitos dos novos conceitos urbanos são desprovidos de qualquer pensamento humanista.

3. A indiferença corrente pelo valor de pensamento do cinema e dos filmes não se explica apenas pela crise da cinefilia enquanto memória colectiva: quase toda a gente saberá o que aconteceu no Mundial de Futebol de 1966, poucos associarão a data a Blow-up... Ora, o que está em jogo não envolve qualquer demonização do futebol (também eu tenho memória do Portugal-Coreia do Norte num pequeno televisor a preto e branco). O que importa considerar é este apagamento do cinema enquanto fenómeno visceralmente social, submerso por um marketing simplista que reduz o prazer do espectáculo ao mercado dos “super-heróis”. Eis um bom tema complementar para os nossos políticos, de todos os quadrantes, inscreverem na sua tímida agenda cultural.