No primeiro semestre de 2018, a frequência das salas escuras baixou — mas o número de filmes estreados aumentou... Assistimos, assim, a uma lenta implosão do nercado. Este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Agosto), com o título 'Num cinema perto de si...'.
Sou dos que pensam que a reflexão sobre a cultura cinematográfica chegou, em Portugal, a um dos seus pontos mais baixos. O assunto é suficientemente complexo para, pelo menos, evitarmos a estupidez ancestral dos que gostam de proclamar que quando a “crítica” dá cinco estrelas a um filme, optam por não ver — começando por Apocalypse Now, imagine-se a ignorância dessas pessoas...
Enfim, é uma caricatura. Lembremos apenas que há questões sérias e graves envolvidas — desde o poder mediático e social de outros modelos narrativos (com inevitável destaque para a formatação telenovelesca) até às formas agressivas do populismo jornalístico (muito ligado, precisamente, ao imaginário da telenovela e dos “famosos”).
O problema, repare-se, não pode ser fulanizado (seja para que lado for). Não se trata de demonizar Tom Cruise porque consegue algumas centenas de milhares de espectadores — aliás, Missão Impossível: Fallout é, por certo, um dos grandes espectáculos do ano. O problema é a marginalidade estrutural e simbólica em que vive todo um importante sector do mercado. Um exemplo apenas: Happy End, de Michael Haneke [trailer].
É um dos meus “5 estrelas” absoluto? Sim, é verdade. Mas faço questão em sublinhar que sou o primeiro a reconhecer (e celebrar) o facto de o trabalho de Haneke sobre a Europa dos refugiados ser visceralmente discutível, quer dizer, capaz de suscitar a inteligência de pontos de vista divergentes. A questão que se coloca é de outra natureza. A saber: como é que o mercado e, com ele, o espaço mediático promovem a reflexão sobre um filme tão complexo e actual como Happy End?
Insisto: as questões envolvidas são muitas, incluindo o facto de os sistemas “alternativos” de difusão (plataformas de aluguer, “streaming”, etc.) atraírem cada vez mais consumidores — todos nós, claro. Deixo apenas uma nota sobre uma estatística que não tem sido muito referida.
Assim, há poucas semanas, soube-se que os números oficiais registam uma baixa significativa de frequência das salas: no primeiro semestre de 2018, os 6,5 milhões de espectadores nas salas escuras correspondem a uma quebra de 17% em relação a igual período do ano passado. Em todo o caso, importa perguntar: ao mesmo tempo, a oferta aumentou ou diminuiu?
Pois bem, aumentou: no primeiro semestre deste ano estrearam-se em Portugal 195 filmes (contra 176 em igual período de 2017). Na prática, uma média superior a um título por dia — isto num país em que a média de frequência das salas por cada cidadão é pouco mais de um filme... por ano.
Dá que pensar esta inadequação entre oferta e procura. Na prática, os filmes têm um tempo de exibição cada vez mais curto, favorecendo o seu banal desconhecimento. Outro exemplo... Não é verdade que, num país de raízes católicas como o nosso, muitos de nós somos sensíveis aos temas da fé e, mais do que isso, à valorização da dimensão espiritual da vida humana? Neste contexto, qual o impacto de No Coração da Escuridão, de Paul Schrader, um filme [trailer] gerado na convulsão dessas questões? Quantos espectadores souberam, efectivamente, da sua estreia? Qualquer resposta envolve factores de natureza económica e cultural. E não se trata de favorecer as velhas e pueris dicotomias: é preciso pensar o mercado como factor cultural, por excelência.