Jean-Pierre Melville e Pierre Grasset [*] |
No mercado português, os clássicos do cinema francês estão na ordem do dia: Dois Homens em Manhattan (1959), de Jean-Pierre Melville, constitui, por certo, uma das mais maravilhosas (re)descobertas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Julho), com o título 'A geometria da modernidade'.
1. Ao rever o filme Dois Homens em Manhattan, de Jean-Pierre Melville (1917-1973), não pude deixar de pensar como a história do cinema permanece uma paisagem em aberto, susceptível de permanentes avaliações e reavaliações. Importa não cedermos a essa ideia simplista, a meu ver anti-cinéfila, segundo a qual os filmes envelhecem “bem” ou “mal”. Mesmo neste tempo de muitos e variados suportes de difusão digital, os filmes permanecem iguais a si próprios — somos nós que mudamos e, melhor ou pior, envelhecemos.
2. Datado de 1959, Dois Homens em Manhattan é uma das magníficas reposições deste Verão, integrada num ciclo de clássicos franceses (a decorrer até Outubro) que nos pode permitir contextualizar a grandeza algo esquecida de Melville. Falo por mim, entenda-se. Sempre gostei de resumir a eclosão da “Nouvelle Vague” através de três títulos emblemáticos, todos de 1959, precisamente: O Acossado, de Jean-Luc Godard, Os 400 Golpes, de François Truffaut, e Hiroshima, Meu Amor, de Alain Resnais. E é verdade que também sempre admirei a frieza geométrica do Melville de obras como O Ofício de Matar (1967), o policial em que Alain Delon, no papel de um samurai dos tempos modernos, encontrou a sua mais bela imagem de marca. Mas importa recolocar Dois Homens em Manhattan no turbilhão de 1959, quando os franceses estavam a abrir os caminhos de uma modernidade que iria ecoar nos mais diversos contextos (incluindo Portugal e a geração do Cinema Novo).
3. Curiosamente, podemos definir o enraizamento de Dois Homens em Manhattan através da música e, em particular, do jazz. A banda sonora de Christian Chevallier conta com a participação de Martial Solal, notável pianista e compositor francês, nascido na Argélia, que no mesmo ano assinou a música de O Acossado. Solal surge mesmo numa sequência do filme, de alguma maneira personificando uma sonoridade que estava a cruzar-se com as convulsões da criação cinematográfica — recorde-se que, um ano antes, Miles Davis tinha composto a banda sonora de Fim de Semana no Ascensor, de Louis Malle.
4. Melville assume um dos papéis centrais. Ele é um jornalista que, na companhia de um fotógrafo (Pierre Grasset), tenta descobrir as razões que terão motivado a ausência injustificada de um diplomata francês numa reunião nas Nações Unidas... O filme organiza-se como uma espécie de “on the road” citadino, com os protagonistas de rua em rua, visitando várias mulheres com quem o desaparecido terá mantido alguma relação. Em boa verdade, na admirável fotografia a preto e branco assinada por Nicolas Hayer, Nova Iorque é a primeira e fundamental personagem: mais do que um cenário, a cidade existe como um mapa imaginário em que verdade e mentira estabelecem ambíguas alianças.
5. Há qualquer coisa de mágico e, ao mesmo tempo, objectivo nesse registo das ruas de Nova Iorque. Melville homenageava os mestres do policial de Hollywood e, ao mesmo tempo, assumia-se como repórter do aqui e agora — a “Nouvelle Vague” foi também uma arte de baralhar as lógicas tradicionais de documentário e ficção.
6. No final, a investigação conduz os dois homens — e, no fundo, o próprio filme — a um dilema moral: tendo em conta tudo o que está em jogo, deverão ou não divulgar as fotografias que, afinal, constituíam um dos objectivos fundamentais da sua investigação? Lição a reter: este cinema de militante fascínio pela abstracção das linguagens narrativas não era estranho a uma elaborada visão social.
7. Daí que Dois Homens em Manhattan seja tudo o que se quiser, menos um objecto banalmente nostálgico: a sua capacidade de registar rostos e lugares transcendeu o momento concreto da rodagem. Podemos mesmo dizer que Melville consegue estabelecer com as acções que filma uma corrente de atenção e cumplicidade com o seu quê de sensual. Dois Homens em Manhattan é, por certo, uma história de descrença nos poderes românticos do amor, mas há nele uma sensualidade que resultado da maneira de olhar o mundo à sua volta.
[ * ] A sequência de Dois Homens em Manhattan a que pertence esta imagem poderá ter sido rodado ainda em 1958, já que o filme anunciado nos néons — Separate Tables/Vidas Separadas, realizado por Delbert Mann a partir da peça homónima de Terence Rattigan — teve a sua estreia novaiorquina a 18 de Dezembro de 1958. Eis o respectivo genérico de abertura.