Peter O'Toole |
Memórias de Lawrence da Arábia, da imensidão do deserto aos caminhos mais secretos da solidão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Julho), com o título 'O deserto é uma coisa interior'.
Faça-se um inquérito a jovens que vivam todos os dias empolgados pelos fenómenos “sociais” que, pelo menos uma vez por minuto, os vão convocando, accionando um bip nos seus telemóveis. Peça-se-lhes que identifiquem uma personagem épica que conheçam através do cinema. Quantos irão citar o coronel, arqueólogo e escritor britânico T. E. Lawrence (1888-1935)? Quantos dirão que sabem da sua existência através de Lawrence da Arábia, o filme que David Lean lhe dedicou em 1962, com Peter O’Toole no papel central?
David Lean |
Convenhamos que o panorama global é terrível: para além da promoção de alguns jogadores de futebol a santos de uma religião planetária, a nossa miséria cultural pode medir-se através do metódico esvaziamento da noção de epopeia cinematográfica. Perante a nossa bonomia, não poucas vezes tingida de estúpido paternalismo, permitimos que as gerações mais jovens sejam ensinadas a confundir a pulsão épica do cinema (e não só) com a acumulação gratuita de efeitos especiais. Isto em paralelo com um cego liberalismo que nos tornou indiferentes ao triunfo quotidiano dos horrores da “reality TV” e seus derivados.
Como é possível que o talento de actores como Robert Downey Jr. seja banalizado (aliás, em boa verdade, ocultado) através da sua encarnação de figuras metalizadas, geradas por mecanismos digitais, como o Homem de Ferro? O nome dele aparece nas fichas dos filmes, mas o que vemos não passa de um fantasma virtual, uma marioneta sem alma que, para além da sofisticação da sua fabricação, nada deve à nobre arte de representar.
Bem sabemos que o artifício e as manipulações técnicas estão ligadas a muitas maravilhas da história do cinema. Não nos esquecemos de Georges Méliès (1861-1938), contemplamos com renovado fascínio o seu foguetão a aterrar no rosto acolhedor da Lua e deslumbramo-nos com as ilusões que ele soube criar há mais de um século, quando o cinema era ainda um sonho hesitante entre a fragilidade efémera da atracção de feira e a glória de ser a forma mais universal de arte popular (que foi, de facto, durante o século XX).
Nada disso tem que ver com a contemplação beata dos feitos tecnológicos. Da angústia ao riso, o cinema foi — e continua a ser — uma linguagem capaz de celebrar as convulsões e contrastes da nossa muito humana condição. André Bazin (1918-1958), mestre do pensamento crítico, terno guru dos cineastas da Nova Vaga francesa, disse-o através de uma frase esplendorosa que continua a seduzir-nos como um enigma que importa, talvez, não tentar decifrar em absoluto: “O cinema substitui os nossos olhares por um mundo que se adequa aos nossos desejos”.
Os nossos jovens poderão até conhecer o filme Lawrence da Arábia através do ecrã mágico do seu computador. Porque não? Contornemos a facilidade do cinismo: como Walter Benjamin nos avisou, sabemos que vivemos assombrados pela “reprodutibilidade técnica” das obras de arte; encararemos tal estado de coisas com euforia ou cepticismo, mas se não pudermos ir a Londres ver os quadros de Francis Bacon na Tate, isso não será uma boa razão para menosprezarmos as virtudes de um competente álbum de reproduções.
Acontece que Lean foi um cineasta da grandiosidade do ecrã. Grandiosidade física, antes do mais, por certo indissociável da sua grandeza mitológica. É verdade que Lawrence da Arábia pode “caber” no rectângulo luminoso do nosso computador. Ou até, suprema insolência, no visor do nosso telemóvel. Mas importa perceber que se trata de um filme, não exactamente feito “contra” a actual proliferação de ecrãs, mas num contexto em que tal proliferação não existia, a não ser, talvez, como delírio de ficção científica.