segunda-feira, julho 30, 2018

Na intimidade de Trump

É bem provável que entre a escrita deste texto e o seu encontro com um possível leitor, tudo tenha mudado... Afinal de contas, o fenómeno 'Trump' é também um sintoma da velocidade equívoca em que vivemos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Julho).

1. O caso Michael Cohen/Donald Trump desenvolve-se a uma velocidade estonteante. O que dizemos ou escrevemos agora, pode (e deve) ser reavaliado daí a pouco tempo. Em boa verdade, nem sabemos muito bem como caracterizar as novas medidas do tempo — não apenas para a prática e o pensamento jornalístico, mas na própria concretização de todas as relações humanas.

2. O facto de Cohen se mostrar disponível, agora (27 Julho), para responder à comissão liderada por Robert Mueller — testemunhando que Trump tinha conhecimento da reunião com enviados russos, na Trump Tower, em Junho de 2016 — introduz um novo e dramático dado cujas ondas de choque apenas começamos a pressentir. Vale a pena, por isso, recuar alguns dias, tentando, pelo menos, inventariar alguns elementos deste turbilhão mediático e político.

3. Como foi amplamente noticiado (25 Julho), Michael Cohen, advogado de Donald Trump, anunciou possuir gravação de uma conversa com o seu cliente sobre as suas relações com Karen McDougal, ex-modelo da revista Playboy. A gravação serviria de prova do facto de Trump ter, de facto, discutido com Cohen a possibilidade de aquisição dos direitos de publicação de uma história sobre uma alegada relação McDougal/Trump. Foi a CNN a divulgar essa gravação.


4. Estamos perante um exemplo, mais um, dos modos de actuação do actual Presidente dos EUA, menosprezando toda e qualquer relação humana. Ou ainda: depois de tantos e tão chocantes exemplos de indiferença pelos mais básicos valores humanistas — do achincalhar das mulheres à abordagem irresponsável da geo-política —, até onde poderá chegar a mediocridade de Trump? As perguntas são tanto mais delicadas quanto nos levam a questionar outro tipo de problemas. A saber: como lidar, no plano da informação, com o terramoto Trump?

5. Ora, precisamente, Trump, o próprio, devolve-nos tais problemas com uma outra pergunta, falsamente ingénua, formulada num dos seus tweets sobre o assunto: “Que espécie de advogado grava as conversas com um cliente?”


Feliz ou infelizmente, a pergunta de Trump não é banal nem indiferente. Porquê? Porque nos remete para os fantasmas de um novo modelo de vivência das relações público/privado. Ou ainda: a pergunta é legítima.

6. Não se trata, entenda-se, de simplificar, muito menos atenuar, as monstruosidades morais de que Trump tem sido protagonista. Trata-se, isso sim, de reconhecer que a gravação efectuada por Cohen e, agora, a sua divulgação pública ilustram um modo de abordagem das relações humanas em que o obsceno foi promovido à condição de natural. É esse o mundo em que passámos a viver. Não é exactamente a intimidade que está ameaçada. É mais do que isso: a própria noção de intimidade passou a ser automaticamente desvalorizada.

7. Face a todas estas convulsões, não sei o que seja um ponto de vista moralmente puro — e seria o último a reivindicá-lo para mim próprio. Afinal, é inevitável reconhecer que a gravação de Cohen e o seu depoimento serão factores determinantes no complexo processo político, moral e mediático que está em curso. Apesar disso — aliás, por causa disso mesmo — é ainda mais perturbante o facto de ser o próprio Donald Trump a formular uma pergunta essencial que quase todos nós tentamos contornar.

>>> A perspectiva de Carl Bernstein [The Washington Post].