Com o filme Ruth, revemos um pouco de Portugal no começo dos anos 60: ou a história de Eusébio transfigurada em crónica ligeira, mas incisiva, de um tempo amargo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Maio).
O filme Ruth vai buscar o título ao nome de código dado a Eusébio da Silva Ferreira quando, no começo da década de 1960, viajou de Lourenço Marques para Lisboa. A mudança de identidade surgiu como pormenor caricato, mas essencial, na guerra de bastidores travada entre dois clubes (Benfica e Sporting) apostados em contratá-lo. Reencontramos, assim, esse fascínio silencioso do nome sobre o qual escreveu Roland Barthes, a propósito da escrita de Proust: o nome existe como “objecto precioso, comprimido, embalsamado, que é preciso abrir como uma flor”.
Assim é o filme realizado por António Pinhão Botelho, a partir de um sólido argumento de Leonor Pinhão. E não é coisa banal tal atitude. Sabemos como algumas experiências em torno de figuras míticas do imaginário português (Salazar, Amália) têm gerado narrativas dependentes da formatação imposta pelas telenovelas: sem espessura histórica, tais figuras surgem como marionetas de uma transcendência que fica sempre por esclarecer. Em Ruth, pelo contrário, há vida social e política: do peso simbólico do futebol aos primeiros sinais da Guerra Colonial, este é, pelo menos, um Portugal que escapa a qualquer visão determinista.
Há, por certo, personagens mais bem desenvolvidas que outras, cenas de impecável “timing” narrativo, outras nem por isso. Mas não se trata de promover “modelos” — nunca foi obrigatório filmar à maneira de Oliveira; seria estúpido sugerir que Ruth deve servir de padrão para o que quer que seja. Acontece que, desta vez, há um filme que se interessa pelas pessoas e pelos lugares, além do mais libertando os actores dos espartilhos novelescos: no papel de Eusébio, Igor Regalla é exemplar na representação de alguém que não pode abdicar do seu nome. Como qualquer um de nós.