[cartaz americano de Hitler: Um Filme da Alemanha] |
Mais um belo filme para nos ajudar a revisitar e repensar as memórias da Segunda Guerra Mundial — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Março), com o título 'A herança de Syberberg'.
Em 1977, o alemão Hans-Jürgen Syberberg assinou um filme prodigioso chamado Hitler: Um Filme da Alemanha. Não é engano: o título integra mesmo a expressão “um filme da Alemanha”, já que se trata de abordar Adolf Hitler como um líder que arrastou o país para um dantesco estado de encenação cinematográfica. E não apenas através do cinema (em particular, dos filmes encomendados a Leni Riefenstahl): o dispositivo nazi de poder envolvia a concepção da Alemanha como um espectáculo colectivo em permanente auto-consagração (foi assim, aliás, que Riefenstahl filmou o Congresso do Partido Nazi, em Nuremberga, em 1934, dando origem ao filme O Triunfo da Vontade).
Como em vários outros momentos da sua filmografia, Syberberg integrava muitos elementos formais e narrativos indissociáveis da ópera, não me parecendo possível considerar O Capitão, de Robert Schwentke, como um descendente directo do seu labor. Em todo o caso, há uma noção visceral que persiste — tem a ver com o próprio lugar simbólico em que colocamos Hitler.
Na altura muito atacado pelos que se escandalizaram com a visão da história através dos artifícios operáticos, Syberberg reconheceu que, de facto, o seu filme não se definia como uma crónica histórica. Em boa verdade, não era sobre Hitler como personagem do passado, antes sobre a sua persistência como elemento do presente. Mais exactamente: sobre “Hitler em nós” [texto de Susan Sontag].
Que está em jogo, então? Algo que excede qualquer processo de “purificação” moral. A saber: a certeza de que nunca somos estranhos às dinâmicas da história colectiva, mesmo quando os crimes nela inscritos nos suscitam a mais veemente condenação. O Capitão é mesmo um filme sobre esse assombramento. O protagonista usa a farda (de capitão) que não lhe pertence como uma máscara, mas a sua tragédia confirma que todas as máscaras expõem alguma verdade — em nós.