O YouTube quer avisar-nos dos perigos da informação que exibe... Ou como o voluntarismo cibernético não sabe o que fazer com a sua própria complexidade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Fevereiro).
Leio uma curiosa notícia vinda dos EUA [The Hollywood Reporter]. Tem a ver com a polémica sobre a utilização do YouTube por entidades ligadas a interesses estatais. Reagindo aos vídeos colocados online pela Russia Today (televisão do governo russo), insinuando uma visão pró-Donald Trump, anti-Hillary Clinton, o YouTube mostra-se empenhado em identificar as “fontes do conteúdo noticioso” a que acedemos. Resultado prático: não apenas os vídeos da Russia Today, mas também, por exemplo, os da PBS (EUA) ou da BBC (Reino Unido) terão, junto ao título e na sua base, uma identificação da origem. Como se, em algum momento, o utilizador tivesse qualquer dúvida sobre tal origem...
Pela positiva, digamos que, por uma vez, é salutar que as chamadas redes sociais reflictam sobre o mundo (social, precisamente) que criaram e todos os dias vão reproduzindo e ampliando — quando a estupidez e a difamação têm maior e mais fácil circulação que a inteligência e a compaixão, a questão deixa de ser tecnológica para se tornar visceralmente cultural.
O cinema, tão esquecido neste processo de reflexão, há muito que trabalha sobre tal temática. Para nos ficarmos por um exemplo modelar, recordemos o filme Homens, Mulheres e Crianças (2014), de Jason Reitman, conciso retrato da decomposição dos laços familiares através de circuitos de muitos links viciados e viciosos (foi, em quase todos os contextos mediáticos, um filme menosprezado ou simplesmente ignorado).
A atitude do YouTube reflecte uma pueril boa vontade que não sabe como enfrentar o nosso mundo de delirante circulação de imagens. Como se uma apertada vigilância de instituições com um nobre historial, como a PBS ou a BBC, fosse a resposta para as atribulações da nossa sanidade social... Triunfa, deste modo, a mesma ilusão voluntarista que encontramos em muitos discursos políticos: não sabendo como lidar com a complexidade das comunicações em rede, instituem-se mais e mais regras de policiamento.
A medida está contaminada por alguns grosseiros equívocos — um representante da PBS veio mesmo esclarecer que a estação recebe uma pequena percentagem de fundos federais, sendo uma entidade “independente, privada, sem fins lucrativos, não uma estação estatal”. Ainda assim, talvez que as dúvidas do YouTube favoreçam uma muito necessária discussão sobre as nossas misérias em rede. Esperemos, sobretudo, que se dê o passo mais importante: o encanto do nosso sistema tecnológico não justifica que ignoremos os dramas inerentes às relações sociais, aliás, humanas.