Andrew Lincoln |
Com a oitava temporada, The Walking Dead chega a um novo patamar narrativo e simbólico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Novembro), com o título 'O perdão no mundo dos zombies'.
Na evolução da série televisiva The Walking Dead (Fox), temos assistido a um desconcertante apagamento das figuras dos zombies. Claro que não desapareceram os “mortos andantes” (a tradução literal envolve um sugestivo resumo dos fantasmas deste imaginário), ilustrando, aliás, uma das vias mais surpreendentes do desenvolvimento dos efeitos especiais, quer em cinema, quer em televisão. O certo é que o confronto dos humanos com os zombies passou a ser uma espécie de pano de fundo infernal, emprestando novas intensidades a uma rede de conflitos visceralmente humanos — as imagens de promoção de The Walking Dead passaram mesmo a dispensar a amostragem dos zombies.
Os primeiros episódios da actual oitava temporada (a série arrancou em 2010) narram uma teia de “guerras civis” que envolvem o colectivo inicial, liderado por Rick Grimes (Andrew Lincoln), a assustadora tribo de Negan (Jeffrey Dean Morgan) e mais alguns grupos gerados no processo de resistência aos zombies. O efeito dramático de tal fragmentação já era sensível nas duas temporadas anteriores, mas agora impôs-se como regra de construção. Em boa verdade, The Walking Dead já não é uma epopeia de resistência aos seres que perderam a sua humanidade, mas sim uma tragédia de humanos contra humanos.
Em especial desde a introdução da personagem de Negan, a questão da sobrevivência tem vindo a colocar-se na sua forma mais drástica, precisamente aquela cuja possibilidade Rick nunca colocou de parte. A saber: para sobreviver no meio de tão dantesco cenário, haverá sempre situações em que os protagonistas terão de matar alguns dos seus semelhantes. É verdade que isso não mudou no dispositivo dramático da nova temporada, mas não é menos verdade que a contundência da sua formulação tem vindo a coexistir com a formulação de uma hipótese de perdão. Há mesmo personagens que resistem a matar os inimigos capturados, sendo Paul Rovia (Tom Payne) o líder de tal atitude — nas relações no interior do seu grupo, Rovia é tratado por “Jesus”.
Vale a pena registar estas nuances, quanto mais não seja porque a maior parte dos valores da cultura popular tendem a ser mediaticamente reduzidos a um pitoresco sem consequências (com excepção do futebol, cujos protagonistas são sistematicamente apresentados como modelos universais). Em tempos de muitas narrativas niilistas, os zombies de The Walking Dead coexistem com uma insólita mensagem de tolerância e compaixão: dir-se-ia que há neles uma (ainda mais) inquietante réstia de humanidade.