João Botelho revisita a herança de Fernão Mendes Pinto em nome de uma ideia feliz de cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Novembro), com o título 'Uma peregrinação cinéfila'.
De que falamos quando falamos das abordagens da história de Portugal nas imagens que consumimos? Ou, de um modo geral, no audiovisual? Dois clichés televisivos dominam as respostas. O primeiro é o mais fácil e também o mais frequentemente aplicado: sentam-se três ou quatro especialistas em semi-círculo e difunde-se através das câmaras. O segundo, para além da especialização, envolve uma afirmação de autoridade discursiva: um especialista, de novo, fala para a câmara (neste caso, basta uma), colocando-se em frente de testemunhos do passado, de preferência monumentos — quanto mais antigos, mais parecem legitimar o seu discurso.
Evitemos as generalizações. Para além das retóricas triunfantes, há acontecimentos televisivos de grande valor informativo e pedagógico que aplicam as regras dos dispositivos atrás descritos. Resta saber o que pode existir — ou ser criado — sem ceder à preguiça das rotinas instaladas.
O novo filme de João Botelho, Peregrinação, surge como um belo exemplo de criatividade e invenção, desafiando os efeitos normativos de muitas imagens geradas sem reflexão sobre o que significa... trabalhar com imagens. Ao propor a reconstituição das viagens de Fernão Mendes Pinto, no século XVI, Botelho começa por questionar os equívocos que essa mesma noção, “reconstituição”, tantas vezes arrasta.
Reconstituir o quê? Os barcos? Sem dúvida. As roupas? É possível. O modo de falar? Interessante, certamente difícil... O que está em jogo é a possibilidade de superar a visão pueril que, não poucas vezes, reduz os chamados filmes históricos a catálogos de adereços mais ou menos luxuosos, sem o mais rudimentar pensamento sobre o que significa percorrer a distância (temporal, cognitiva, simbólica) que nos separa dos acontecimentos evocados.
Botelho aplica um instrumento, inesperado e fascinante, para lidar com essa distância: a música ou, mais precisamente, as canções de Fausto, do álbum Por Este Rio Acima (1982), agora retrabalhadas por Luís Bragança Gil e Daniel Bernardes. Que acontece, então? Descobrimos que o concreto das experiências de Fernão Mendes Pinto não rejeita, antes parece atrair, os artifícios que as matérias musicais transportam e instalam. A histórica como colagem de referências “realistas”? Digamos que sim. A música como derrapagem “irrealista”? Sim — porque não? O certo é que, em Peregrinação, os respectivos contrastes coexistem de modo feliz e contagiante: não é uma história de especialistas, mas uma saga, bizarra e contraditória, de portugueses.