Howard Hughes, aliás, Warren Beatty |
Assim vai o mundo do cinema: o mais recente e prodigioso filme de Warren Beatty, Rules Don't Apply, não chegou às salas de cinema portuguesas... — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Novembro).
Warren Beatty realizou um dos filmes mais extraordinários de 2017: chama-se Rules Don’t Apply e coloca em cena a figura verídica do bilionário Howard Hughes (1905-1976), interpretado pelo próprio Beatty. O essencial tem a ver com o romance entre uma candidata a actriz, Marla (Lily Collins), e um dos motoristas de Hughes, Frank (Alden Ehrenreich). Em várias entrevistas, o actor/realizador foi claro na caracterização do seu trabalho: “Não se trata de uma biografia de Howard Hughes — é antes um filme envolvido com aquilo que eu chamaria as consequências cómicas, por vezes tristes, do puritanismo sexual da América no final dos anos 50, princípios dos anos 60.”
Em boa verdade, quase ninguém deu atenção ao propósito de Beatty. Estreado sem qualquer pompa, Rules Don’t Apply foi um desastre comercial nos EUA, sendo de imediato “castigado” com a supressão do seu lançamento em quase todo o mundo, surgindo nas salas de apenas seis países (três na Europa: Espanha, Itália e Reino Unido). Entre nós, pelo menos, está a passar no canal TV Cine & Séries, com o título Excepção à Regra.
O caso envolve uma lição exemplar: filmar a sexualidade para além dos padrões dominantes num determinado momento histórico envolve um preço elevado, nem que seja a marginalização dos circuitos de distribuição/exibição. E, no entanto, encontramos na produção de Hollywood muitas e fascinantes abordagens do sexo, seus medos e fantasmas. Para nos ficarmos por apenas alguns exemplos, lembremos como a sexualidade se expõe nas tensões indivíduo/sociedade em filmes admiráveis como Um Lugar ao Sol (George Stevens, 1951), A Última Sessão (Peter Bogdanovich, 1971), Sexo, Mentiras e Vídeo (Steven Soderbergh, 1989), Estrada Perdida (David Lynch, 1997) ou Fur – Um Retrato Imaginário de Diane Arbus (Steven Shainberg, 2006).
Com uma inteligência plena de ironia, Beatty retoma essa herança, expondo Hughes, lendário produtor de cinema e industrial de aviação, como rei e peão, patrão e escravo de um xadrez sexual dominado pelos discursos masculinos. E não é das menores maravilhas de Rules Don’t Apply o modo como é encenada a história de Marla, protagonizando uma saga pessoal de conquista do seu próprio discurso, em paralelo com a tocante decadência física de Hughes, assombrado pela dependência de drogas. Para Beatty, enfim, tratava-se de evocar a época em que ele próprio chegou a Hollywood. Tanto pior se o nosso tempo não quer lidar com o seu filme — o futuro tornará claro o génio criativo de Rules Don’t Apply.