sexta-feira, outubro 20, 2017

Marcelo e o povo

FOTO: Nuno André Ferreira / DN
FOTO: Nuno André Ferreira / SIC Notícias
1. Imagens como estas têm proliferado nos últimos dias: o Presidente da República visita as zonas afectadas pelos fogos, multiplicando encontros emocionados com pessoas que aí vivem e que, na maior parte dos casos, perderam familiares e ficaram com as casas e bens destruídos.

2. Não é fácil olhar para estas imagens, perguntando que iconografia é esta que estamos a viver — ou que nos obrigam a viver. E não é fácil porque o nosso pensamento corre o risco de ser sugado pelo determinismo com que muitos discursos televisivos contaminaram o espaço social. Que determinismo? O que leva a perguntar, por exemplo, a um jogador de futebol "que emoção sentiu" quando marcou o golo — como se a emoção fosse um objecto de descrição matemática e, pior do que isso, como se a emoção envolvesse uma verdade única e unívoca que ninguém pode recusar.

3. As coisas complicam-se um pouco mais porque, no limite, tal ideologia mediática nos pode empurrar para o cinismo que, hoje em dia, triunfa em muitos discursos jornalísticos. Na perspectiva de tais discursos, seria preciso perguntar: "o Presidente está ou não a sentir as emoções que exibe?".

4. Como falar disto? Talvez começando por contemplar (e admirar) a inteligência política de Marcelo Rebelo de Sousa. Deste modo, ele sabe que funciona como escape simbólico dos dramas que assombram o país, conseguindo, pelo menos, que as descargas afectivas que suscita se polarizem na sua própria figura, desse modo impedindo que as linguagens mediáticas dominantes se entreguem a uma qualquer acumulação de cenas histéricas sem objecto narrativo — ou cuja narrativa se esgota na produção de histerismo.

5. Mas o Presidente consegue um pouco mais do que isso. Subitamente, através dele, o significante povo reaparece nos circuitos de comunicação. Reaparece, literalmente: há muito desaparecido das argumentações políticas (a não ser, pontualmente, e de forma simplista, como signo de "militância" nos discursos do Partido Comunista), o povo que rodeia Marcelo expõe-se, subitamente, como entidade cuja existência — vida e morte — não pode ser negada.

6. Não é coisa secundária, tal evento. Desde logo, porque temos sido afogados na figuração populista do "povo" que, na mais completa impunidade, prolifera há 40 anos no espaço telenovelesco. Depois, porque nomear o "povo" serve, por vezes, apenas para lhe sobrepor alguma celebração do sucesso de quem é identificado pelas suas origens "populares", desse modo superando as "limitações" dessas mesmas origens — observe-se, a esse propósito, o discurso-padrão em torno do sucesso financeiro de Cristiano Ronaldo, organizado como telenovela "épica" da humildade das origens à acumulação dos milhões.

7. Agora, o povo chora, grita, sente angústia, indignação e revolta. Expõe, afinal, o supremo escândalo político: o de que não o conhecem, nem reconhecem, a não ser quando chegam os bombeiros e se instala a mágoa infinita de todas as perdas. Contra o cepticismo de muitos (a começar por mim), temos, agora, um Presidente que não se substitui demagogicamente ao povo, antes pergunta que lugar ele tem ou pode ter na paisagem social que somos e, com mais ou menos talento, tentamos construir — talvez consigamos, pelo menos, recuar a algo de primordial e contemplar o que há de povo em cada um de nós.