Com "Blade Runner 2049", o realizador Denis Villeneuve assume-se como brilhante herdeiro do filme dirigido por Ridley Scott há 35 anos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Outubro), com o título 'A arte de contar histórias'.
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Pertenço à geração que, ainda na adolescência, descobriu os prodígios de 2001: Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick. Dito de outro modo: no começo da década de 80, o impacto de Blade Runner, de Ridley Scott, não correspondeu, para mim, a um fenómeno fundador. Reconhecer tal diferença de visão não envolve qualquer menorização da importância histórica e técnica do filme de Scott — trata-se apenas de recordar que a possibilidade de um filme abrir um novo ciclo (temático, estético, simbólico, etc.) não pode ser desligada das diferenças naturais dos seus espectadores.
Se recordo tais diferenças, não é por qualquer impulso nostálgico. Trata-se tão só de perguntar de que modo o novo e admirável Blade Runner 2049, de Denis Villeneuve, irá mobilizar (ou não) os espectadores mais jovens. Não é uma dúvida de “gosto”. Acontece que há, pelo menos, uma geração que tem sido (des)educada a partir da noção simplista segundo a qual as virtudes do espectáculo decorrem apenas da acumulação dos célebres... efeitos especiais.
O paradoxo é evidente e sugestivo. Assim, Blade Runner 2049 impõe-se como invulgar colecção de proezas técnicas, das mais assombrosas que vimos nas últimas décadas. Ao mesmo tempo, convém não simplificar: o seu fulgor tem como base um sofisticado trabalho de escrita de argumento em que se cruzam referências que vão do clássico filme “noir” ao melodrama, passando pelas presenças (virtuais) de Elvis Presley, Marilyn Monroe e Frank Sinatra. No limite, o que está em jogo é o futuro da própria arte de contar histórias. Dir-se-ia que, procurando revalorizar os valores e o prazer de um cinema enraizado nessa arte, Blade Runner 2049 é um filme que, através dos replicantes, não desistiu da dimensão humana. E do nosso desesperado humanismo.