quarta-feira, outubro 11, 2017

Alain Delon por Jean-Pierre Melville

O OFÍCIO DE MATAR (1967)
A retrospectiva de Jean-Pierre Melville é um dos acontecimentos centrais na 18ª edição da Festa do Cinema Francês — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Outubro), com o título 'Alain Delon em tom abstracto'.

Integrada na Festa do Cinema Francês, a Cinemateca apresenta, até dia 18, uma retrospectiva de Jean-Pierre Melville (1917-1973), por certo um dos autores mais esquecidos da Nova Vaga francesa. De facto, por desconhecimento ou preconceito, o seu nome raramente surge associado a esses tempos gloriosos — convenhamos que tal exclusão talvez não desagradasse ao próprio Melville.
Assim, é verdade que Melville foi absolutamente contemporâneo das criações dos novos autores, tendo mesmo participado, num pequeno papel de um escritor americano, em À Bout de Souffle/O Acossado (1959), primeira longa-metragem de Jean-Luc Godard e um dos títulos fundadores do movimento. O certo é que o seu trabalho, pelo menos desde Bob le Flambeur (1955), foi conduzido por uma obsessão, não exactamente contrária, mas alheia às propostas dos cineastas da Nova Vaga: ele é, afinal, um metódico discípulo das regras do filme de gangsters “made in USA”, procurando criar dispositivos formais que tendem para uma gloriosa abstracção.
Semelhante visão não esgota a sua obra, quanto mais não seja porque nela encontramos, por exemplo, um objecto tão singular e perturbante como Léon Morin, Prêtre/Amor Proibido (1961) protagonizado por um Jean-Paul Belmondo nos antípodas da sua própria imagem em À Bout de Souffle. Contracenando com Emmanuelle Riva, no papel de uma jovem viúva, militante comunista, Belmondo interpreta um padre compelido a reavaliar os seus valores na França ocupada pelos alemães.
Em qualquer caso, Alain Delon será o actor mais adequado para simbolizar o universo de Melville e, em particular, a sua fixação numa solidão radical (em que muitos viram uma duplicação da sua condição artística). Dirigiu-o em três filmes magníficos: Le Samouraï/O Ofício de Matar (1967), Le Cercle Rouge/O Círculo Vermelho (1970) e Un Flic/Cai a Noite sobre a Cidade (1971), este um brilhante cruzamento do policial com o melodrama, com Catherine Deneuve a contracenar com Delon.
Le Samouraï distingue-se pela sua depuração formal, ainda que sem qualquer esgotamento formalista. Bem pelo contrário, quanto mais os gestos, olhares e cenários parecem pertencer a uma paisagem fora da história dos homens comuns, mais se acentua o envolvimento da mise en scène de Melville com as sombras do comportamento em que, conscientemente ou não, todos nos reconhecemos. Interpretando um assassino profissional de nome Jeff Costello, Delon habita o filme como um fantasma demasiado humano, quer dizer, uma personagem visceralmente trágica.