O que é um filme político? E um filme político em Portugal, 2017? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Setembro), com o título 'Uma fábrica muito portuguesa'.
Será que “este” filme vai salvar o cinema português? Ao longo de décadas, tenho ouvido esta pergunta nas mais diversas formulações, as bem intencionadas e as outras. Como sempre, a pergunta só pode ampliar um equívoco: o de confundir o cinema com um exercício de redenção religiosa, supostamente sancionado pelas forças cegas do mercado.
Vejo agora A Fábrica de Nada, de Pedro Pinho (em exibição), e pergunto-me que é feito das vozes que gostam de proclamar que há filmes portugueses que “apenas” servem para os festivais internacionais. Desapareceram essas vozes (tais como as que difamavam a obra de Manoel de Oliveira, mesmo sem saberem identificar um único dos seus filmes). Convenhamos que este seria um alvo preferencial: até finais de 2017, o filme estará presente em mais de meia centena de festivais, além de ter estreia assegurada numa boa dezena de países, incluindo França, Reino Unido e China.
Há uma velha e básica lição que importa relembrar: quando um filme tão visceralmente português — sobre a crise vivida numa fábrica que a respectiva administração tenta encerrar — obtém tais ecos, isso significa que a sua dimensão regional envolve um fortíssimo apelo universal. Os filmes não têm de ser todos assim, nem se espera (muito menos exige) que a ousadia criativa de A Fábrica de Nada possa gerar qualquer unanimismo cinéfilo e mediático. Acontece que estamos perante um objecto que arrisca lidar com o mundo do trabalho (tantas vezes reduzido a retóricas de esquerda e paternalismos de direita), inventando uma linguagem plural para encenar as suas convulsões.
Plenamente consciente do labirinto de informações com que, hoje em dia, lidamos com o mundo laboral, A Fábrica de Nada entra nesse labirinto para ver e sentir as suas diferenças e contradições. Por vezes, sobretudo na primeira parte, sentimo-nos vaguear no interior de um testemunho quase documental, de alguma maneira sugerido pelo grão das imagens, registadas com a “velha” película de 16mm. A certa altura, porém, percebemos que tal efeito de “reportagem” vai sendo contrariado, ou melhor, contraposto a cenas de respiração surreal e até a alguns momentos típicos de cinema musical.
Estamos, enfim, perante um filme capaz de nos confrontar com um tempo presente em que a reavaliação do próprio conceito de trabalho questiona os valores colectivos e as certezas individuais. Filme político, sem dúvida, desde logo porque não vemos nem ouvimos os protagonistas da cena política a lidar com este misto de desencanto e alegria.